terça-feira, 22 de abril de 2008

Sobre "A jovem homossexual,ficções psicanalíticas", ainda um outro olhar


"Ainda, um outro olhar".


Resenhada por Noemi Moritz Kon (Noni), psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, mestre em psicologia pelo IPUSP e autora de Freud e seu duplo: reflexões entre psicanálise e arte. (EDUSP/FAPESP, 1996).


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Ainda, um outro olhar.




Resenha de Rosa Maria Gouvêa Abras (org.) A jovem homossexual: Ficção Psicanalítica, Belo Horizonte, A. S. Passos Editora Ltda., 1996, 108 p.




"Viena, 17 de dezembro de 1919.

Liebe Elizabeth.

Alguns meses nos separam desde minha última carta. Desculpe-me pela demora, Sissi, mas, como você sabe, a vida anda bastante agitada aqui em Viena, aliás, como em toda parte. Os tempos são negros, muitas doenças e fome; as coisas não estão mesmo fáceis, mas nada que um passeio pela Ring não nos faça esquecer.

Só espero que esses novos planos dos sociais-democratas venham mesmo para garantir esta nossa república parlamentar, que nasce, como se fala por aí, das cinzas do velho império, não é?

Você tem seguido ultimamente os folhetins? São mesmo ótimos, mas não se comparam aos acontecimentos que tenho acompanhado aqui na casa dos von Kleist. Ser governanta de uma família tão tradicional aqui de Viena, me permite presenciar momentos difíceis de serem esquecidos.

Como você bem sabe, temos tido recepções muitíssimo interessantes - com concertos, valsas e, também, com declamações de poesia. Não é mais como outrora, como acontecia ainda há uma década atrás, mas é bem divertido observar damas e cavalheiros tão bem trajados, participando daquela harmoniosa e alegre atmosfera e, ao mesmo tempo, com algum estranhamento, surpreender trocas de olhares lascivos entre respeitados membros de nossa sociedade, que revelam, ou prometem, discretas relações extra-conjugais.

Mas essa é ainda a velha e nostálgica Viena, com sua jovialidade e pompa próprias de nosso querido Francisco José, que se destaca, através de um olhar mais apurado, nestas outras atitudes.

Mas deixemos de lado estas generalidades. Sissi, gostaria de lhe por a par das novidades da família von Kleist.

Você sabe que a madame acaba de ter mais um filho varão. O tempo passa, mas Frau Alma von Kleist mantém a silhueta. Vive com o caçulinha no colo, mas, é claro, sempre dispõe de tempo para suas aulas de canto e para a visita à costureira. Ela é uma ótima mulher: amável com o esposo, atenta com os empregados e com os afazeres domésticos - nada falta aqui, apesar destes tempos de dificuldade -, muito carinhosa com seus filhos varões. Mas devo lhe dizer algo: Frau von Kleist é um pouco displicente com sua filha, fräulein Leonora. Lembra-se dela?

Leonora é aquela menina fogosa, de quem já lhe falei, que se punha a brincar com seu irmão Friedrich de uma maneira tão intensa; chegaram a tal ponto, que um dia não me contive e disse a eles que uma brincadeira como aquela não era adequada.

Logo eu, que não sou dada a intervir na educação da família; sei bem qual é o meu lugar, mas não pude me conter.

Leonora, hoje uma jovem no fulgor de seus dezoito anos, é muito inteligente, até mesmo atrevida. É uma espécie de feminista, como se diz por aí; reivindica seu espaço, quer estudar, ter os mesmos direitos dos homens, enfim, ser como seu irmão.

E é justamente Leonora o personagem principal dos acontecimentos que se desenrolam aqui - na verdade, superamos de longe a ficção de Arthur Schnitzler. Nosso enredo tem ingredientes ainda mais picantes do que os dele; daria, certamente, um bom romance.

Acontece que depois de se fartar de visitar aquele menininho de três anos por quem ela tanto se afeiçoou - lembra-se que eu já lhe relatei em outra carta -, Leonora passou a procurar jovens senhoras, mães recentes.

Do que tenho ouvido falar, nas últimas férias que a família tirou na estação de águas, em Bad Gastein, Leonora passou todo o tempo atrás de uma atriz, ainda sem qualquer renome, e segundo Herr Anton von Kleist, uma moça um tanto vulgar. Seu pai, que normalmente é tão atarefado - com o trabalho e tudo o mais - e, digamos, um tanto ausente, está agora muito preocupado com a filha e com sua reputação.

Daí, os acontecimentos só se avolumaram; não sei se somente para irritar seu pai ou tê-lo mais perto, ou, ainda, para mostrar algo à mãe que lhe é, vamos dizer, um tanto distante, Leonora passou a procurar insistentemente uma certa Maria Klein, que não goza de bom nome, - parece ser mesmo uma demi-mondaine -, mas que fräulein von Kleist cerca de favores.

Segundo pude averiguar, esta tal Frau Klein teria até posado nua - é, nua! -, para um certo pintor que faleceu em outubro passado. Dizem que ele teria apanhado a gripe espanhola, mas ouvi boatos sobre suicídio. Lembra-se dele? Um mocinho chamado Egon Schiele.

Mas voltemos aos von Kleist. Outro dia a bomba estourou: Herr von Kleist, retornando do escritório, deu de cara com Leonora de braços dados com esta "zinha" em pleno passeio público. Pelo que soube, o pai lhe jogou um tal olhar que fräulein não se sustentou e caiu, ou se atirou, nos trilhos do trem. Por sorte, não se machucou muito, a coitadinha, mas ficou acamada por algumas semanas para se recompor.

Obtive, ainda, outras informações através de uma amiga que passava pelo local e tudo viu e ouviu. Segundo sua versão, Maria Klein teria dito à pobre Leonora que não a queria mais por perto. Deve ter sido um golpe muito forte para a mocinha, que assim deve ter se decidido, em um impulso, pelo suicídio.

Mas como são as coisas... este infortúnio foi de valor para Leonora. Até mesmo Frau Klein tem mandado pedir notícias sobre seu estado e, através de mensageiros, lhe presenteia com flores e doces. E mais, agora todos aqui na casa são mais carinhosos com ela. É mesmo. Todos que antes rodeavam apenas Frau von Kleist passaram a cuidar, com todo zelo, de fräulein.

Pelo que escuto nos corredores, as seguintes providências serão tomadas: em primeiro lugar, Leonora continuará um tratamento com um tal de Dr. Sigmund Freud, um médico judeu, aqui mesmo de Viena, que lhe foi indicado por seu irmão Friedrich. Segundo soube, este tratamento chama-se psicanálise. Eu mesma tenho acompanhado Leonora todos os dias - de segunda a sábado - até a rua Bergasse para que ela converse com este senhor. Algumas vezes, ela comenta o que fazem juntos: ela fala o que lhe ocorre na cabeça, ele lhe pede que lembre de fatos de sua infância e algumas vezes, eles examinam seus sonhos. É, sonhos! Não falo aqui de desejos futuros, mas destes sonhos esquisitos que temos quando dormimos. O mais estranho, (mas como penso besteiras, não deve haver nada de errado e, certamente, não seria do gosto de fräulein), é que ela fica todo o tempo deitada em um divã e ele sentado (segundo o que Leonora me diz) em uma poltrona bem atrás dela.

Leonora me parece bem, mas nada me convence de que mudará sua conduta. Ela sai do consultório do Professor Freud com uma cara muito marota. No fundo, creio que ela aceitou manter estas conversas com o Dr. Freud apenas para acalmar seu pai.

Ah, já ia me esquecendo... Herr von Kleist planeja ainda uma outra alternativa para a filha rebelde. Outro dia, entretida na limpeza, vi-o ler, para Frau von Kleist, o esboço de uma carta que ele enviaria a seu sócio, incentivando o matrimonio entre Leonora e o filho de seu amigo. Sei que é por conveniência - ainda mais, numa situação como esta -, mas seria mesmo um bom negócio.

Por hora são estas as novidades... mas deixe-me ainda lhe perguntar uma outra coisa que tem insistido em minha mente: não foi mesmo um tal Dr. Freud que andou passeando com a prima Katharina, há tantos anos atrás, pelos campos de nossa Hohe Tauern, para lhe dar uns conselhos e lhe tirar aquelas idéias amalucadas da cabeça?

De toda forma, ele não teve muito sucesso com Leonora, pois na última sessão - é assim que se chamam estes encontros - ele indicou uma outra doutora para dar prosseguimento ao tratamento de fräulein. Uma senhora chamada Helene Deutsch. Os tempos mudaram mesmo! Uma médica mulher! Quem sabe Leonora não esteja mesmo certa e as mulheres terão maiores chances no futuro e ocuparão outros espaços de trabalho além do da família, não é?

Bem, vou me despedindo. Espero que em casa todos estejam de boa saúde e aproveito o ensejo para lhes desejar um Feliz Natal e um ano próximo melhor do que estes que o antecederam.

Abraços a todos

Gunda Pappenunheim."


*


O livro que apresento aqui, A jovem homossexual: ficção psicanalítica, foi organizado por Rosa Maria Gouvêa Abras tendo como ponto de partida uma idéia muito divertida e interessante. Rosa Maria utiliza "A Psicanálise de um caso de homossexualismo numa mulher" (1920) de S. Freud, como disparador de um exercício de múltiplos olhares em torno de um mesmo acontecimento: Leonora, uma jovem de dezoito anos, tenta o suicídio, depois de receber um certo olhar de seu pai, ao ser surpreendida por este, no momento em que passeava com uma querida amiga, de má reputação, pelas ruas de Viena. Seu comportamento é o motivo pelo qual a levam ao consultório de Freud e, dos encontros que se seguiram, surge o artigo do psicanalista.

Para a discussão deste artigo de Freud, Rosa Maria Abras usa de um artifício instigante: convida diversos psicanalistas para, partindo do ponto de vista de cada um dos protagonistas da trama, fazer a narrativa dos acontecimentos. Assim, a apresentação é feita por Marcio Peter de Souza Leite, Oscar Cezarotto faz às vezes do Pai, José Domingues de Oliveira conta a versão da Mãe, Renato Mezan traz o olhar do Irmão, a visão da Dama é narrada por Ângela Maria Araújo Porto Furtado, a Jovem é encarnada por Maria Rita Kehl e ainda temos um comentário, ao modo do diário clínico de Sàndor Ferenczi, escrito por Eliana Schueler Reis, além de um resumo do caso, elaborado pela organizadora. Cada autor, em um estilo diferente, traz uma interpretação parcial dos acontecimentos e o conjunto formado por estas narrativas é, sem dúvida, muito atraente.

Este livro, de muitas versões, me fez lembrar uma peça de teatro recentemente levada em S.Paulo, chamada Tamar. Nesse espetáculo não havia palco; era encenado em uma casa e cada elemento da platéia deveria escolher um dos personagens para seguir, podendo assim ter a visão específica do protagonista eleito. Desta forma, o que se tinha eram visões parciais e, em realidade, a experiência da visão possível, sempre singular. Lembrei-me também de uma obra de Julio Cortázar, O jogo da amarelinha 1, que podia ser lida de diferentes maneiras, ao se variar a sequência dos capítulos, de forma a questionar a ordem linear e causal das histórias. Esta é uma tendência atual nas artes - basta pensar no cubismo - e que permite que experienciemos, assim como acontece na própria psicanálise, que uma história, em realidade, são inúmeras e feitas de múltiplas facetas concomitantes.

Assim sendo, o mínimo que se pode dizer da leitura deste livro é que ela é prazeirosa e que, enfim, nos enseja a adoção desta postura multifacetada, ou seja, a vivência dos muitos olhares. A personagem da criada, é claro, não faz parte da descrição de Freud; foi uma liberdade que tomei - não resisti à tentação de entrar na brincadeira -, mas ela é mesmo plausível e muitas outras o seriam. Teci-a com os fios do artigo original de Freud, mas utilizei, também, as visadas dos autores presentes no livro, apoiando-me, ainda, em alguma informação bibliográfica.

Para além deste exercício, temos o caso descrito por Freud, que, por si só, já é muito interessante e permite o rastreamento de suas primeiras observações, agora já mais claras, sobre a homossexualidade e a feminilidade, que iriam, mais tarde, se desdobrar em "Algumas consequências psíquicas da diferença sexual anatômica" (1925), "Sobre a sexualidade feminina" (1931) e "A feminilidade" (1933). Sabemos das inúmeras críticas que foram lançadas ao psicanalista quanto a sua posição relativa ao feminino. Mas Freud é Freud, e sempre nos surpreende; além de importantes indicações técnicas, poderemos seguir, em mais uma oportunidade, sua teorização, que é sempre precisa - quer concordemos com seu ponto de vista ou não - e útil.

De toda forma, Leonora, assim como Dora (Freud, S., 1905), não deu a Freud o sucesso que ele teria desejado; em ambos os casos, a relação transferencial é mal resolvida e o tratamento interrompido precocemente. Estas mulheres, assim como as suas primeiras histéricas, que o jogaram no rumo da psicanálise, lhe escapam mais uma vez.

Sintomaticamente, é a uma psicanalista que Freud entrega fräulein von Kleist para o prosseguimento de sua análise. Conjecturas levam-nos a imaginar que Helene Deutsch, a mesma que havia recebido, em confiança, o difícil discípulo Victor Tausk - que se suicidou neste mesmo ano de 1919 - tenha recebido a incumbência de dar continuidade à psicanálise de Leonora.

As mulheres - e são tantas as que marcaram sua vida -, parecem ter mesmo muito a trazer para Freud; e, assim, também o fez, a velha e feia criada de Sigmund, que o colocou no caminho de suas criações.

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