segunda-feira, 7 de abril de 2008

Amor: Ficção heróica ou fixação neurótica?


Uma reflexão sobre o texto de Freud:
“Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens”
Contribuição à psicologia do amor I (1910)


Ao atender uma menina de 10 anos escuto as seguintes palavras: “Meu pai morreu com sete facadas, dando em cima de uma mulher casada”. Se atentarmos para a sonoridade da frase, percebemos que há nela uma conotação imaginativa trágica, porém bela. Suas palavras tecem, em torno do abismo de seu trauma, uma história. Por enquanto a menina está muito doente; em seu corpo vejo as marcas de uma escrita heróica. Pergunto-me se a psicanálise poderá ajuda-la.

Freud, ao iniciar o seu texto: “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens”, o faz introduzindo a reflexão sobre a arte do escritor naquilo que a “licença poéticas ” lhe possibilita: criar prazer estético e despertar emoções: (...) O escritor vale-se (...) da sensibilidade que lhe permite perceber os impulsos ocultos da mente de outra pessoa e de coragem para deixar que a sua própria, inconsciente se manifeste. A partir daí, no texto de Freud, a psicanálise com o “romance familiar do neurótico”, para que algo se desvende nesse terreno inefável e misterioso do amor. Freud então descreve uma tipologia que o permite criar uma “série de condições necessárias ao amor”, no homem, “cuja combinação é ininteligível e até desconcertante”. O triangulo edípico é o pano de fundo sob o qual se desenrola toda nebulosa imaginária da criança empenhada em salvar seus primeiros objetos de amor_ o pai e a mãe. Porem, transfigurada na densa série de imagens femininas, o complexo materno se inscreve na subjetividade infantil.
A primeira das pré-condições é a fantasia de que, nesse triângulo, “deva existir uma terceira pessoa prejudicada; estipula que a pessoa em questão nunca escolherá uma mulher sem compromisso (...) uma mulher sobre a qual outro homem possa reivindicar direitos de posse” Segundo Freud, instala-se aí o terreno, através do qual, as pulsões de agressividade e rivalidade irão se gratificar.
A segunda pré-condição para o amor, talvez seja aquela na qual se inscreverá os impulsos da “Jovem homossexual”, caso clínico de Freud, 10 anos mais tarde: o amor à prostituta. O objeto amoroso prevalente seria uma mulher, de alguma forma, sexualmente de má reputação, cuja fidelidade e integridade estão expostas. Entram aí os murmúrios de escândalo a alguém inocente ou até “o modo de vida francamente promiscuo de uma cocotte ou de uma profissional na arte do amor”. O afeto gerado é o ciúme, não à pessoa a quem pertence a amada mas os estranhos que lhe fazem a corte. “ Em casos evidentes o amante não demonstra qualquer desejo de posse exclusiva da mulher e parece sentir-se perfeitamente à vontade na situação triangular”
A terceira pré-condição relaciona-se ao que Freud chama de objetos amorosos do mais alto valor, os quais conduzem o amante à uma fidelidade extrema, exigindo- se um alto dispêndio de energia. Se repetem, _ esses amores_ formam uma série que revelam sua natureza compulsiva. Aqui predomina o que Freud vai chamar de uma fantasia de salvar a mulher, ânsia de salvar, e o amante se inclinará por uma escolha cuja amada seria alguém mais madura (constelação psíquica relacionada à mãe).
O que parece animar Freud em sua investigação sobre o amor masculino é o forte contraste entre a mãe e a prostituta e a relação inconsciente entre os mesmos, pois já houvera descoberto que, o que no consciente se encontra dividido entre dois opostos, muitas vezes ocorre no inconsciente como uma unidade. A criança então, já no declínio do Complexo de Édipo, portanto com um estoque verbal e simbólico bem desenvolvidos investe o imaginário com os mais variados temas sobre a sexualidade dos pais. Os afetos_ competição, rivalidade, ciúmes, ânsia de salvamento e outros formam o substrato de onde derivam as mais surpreendentes conclusões a que chega o menino na pré-moldagem de sua futura escolha objetal ou, também, a estrutura de sua fixação neurótica. Freud parece perceber que, não obstante o pai exerça um papel preponderante na triangulação edipiana, o núcleo central para onde convergem a maior parte das fantasias da criança é a mãe. O pai, esse intruso rival sempre duvidoso, terá também que ser salvo, pois afinal, imagina o menino, não quero nada de meu pai; devolver-lhe-ei tudo que gastou comigo. Porém a mãe, como núcleo do complexo parental, mesmo prostituta, é aquela que lhe deu a vida, e a criança terá que se haver com esses paradoxos. Este é o romance familiar do neurótico, que, tal como num processo onírico secundário, poderá desdobrar-se na criação literária ficcional. Não estaria aí a origem do mito do herói? As crianças em seus devaneios, inventam seus personagens que segundo Freud, seria uma forma simbólica de se aproximar do real: A antítese do brincar não é o que é sério mas o que é real , nos dirá ele em “Escritores criativos e devaneios”.

Bem próximo à Freud e Lacan, o filósofo francês Gilles Deleuze nos traz, neste contexto, uma substantiva contribuição. Segundo ele:
(...) não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a psicose não são passagem de vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado.(...) Por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo. O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura aparece, então,como um empreendimento de saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma saúde de ferro, mas ele goza de uma frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis(...)

Referências bibliográficas

DELEUZE, GILLES. “ A literatura e a vida” In: Crítica e Clinica _ São Paulo: Ed. 34, 1997

FREUD, SIGMUND. “ Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens” ( contribuição à psicologia do amor I – [1910] ) In: Obras completas de Sigmund Freud Vol. XI . Imago Editora; Rio de Janeiro: 1982.

FREU, SIGMUND. “Escritores criativos e devaneios” (1908 [1910] ) In:Obras completas de Sigmund Freud. Vol. IX, Imago Editora; Rio de Janeiro: 1982.

FREUD, SIGMUND. “ Romances Familiares” (1909 [1908] ) In: Freud, Sigmund. Vol. IX, Imago Editora; Rio de Janeiro: 1982.


Maria Barcelos de Carvalho Coelho
Belo- Horizonte, 4 de abril de 2008









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