quinta-feira, 17 de abril de 2008

Mulheres e contemporaneidade




Angela Maria de Araujo Porto de Furtado*


A mulher, o que se pode dizer dela?
O que elas podem se dizer sobre isso?
O que pode uma psicanalista dizer sobre a mulher?
O que diz dela o inconsciente?
A pergunta se justifica na medida em que o inconsciente é um saber e ele o é tanto quanto é decifrado nos ditos dos analisandos, sejam eles homens ou mulheres.
Ninguém desconhece que a descoberta de Freud foi muito mal recebida à sua época, sob a alegação dos costumes vigentes e a acusação de pansexualismo, isto é, dizia-se que Freud via sexo em tudo!
Mas o Sexo, com maiúscula, para designar como faz a língua francesa, essa metade dos seres falantes que chamamos mulheres, este Sexo, ele não a encontrou em parte alguma! Curioso pansexualismo!
O que estou querendo dizer com isto? No inconsciente decifrado por ele, dos ditos de seus analisandos, o outro Sexo, o Segundo como diria Simone de Beauvoir, que inscreveria a diferença feminina, não existe!
As pulsões que movimentam os seres humanos são parciais, portanto, “perverso polimorfas”. A criança constroi teorias quanto à relação entre os sexos, mas na verdade as inventa, a partir da experiência parcial que tem de suas pulsões, de suas satisfações, sempre parciais. E as teorias que inventa nada dizem da diferença entre homem e mulher e deixam intacta a questão de saber o que distingue a essência da mulher...
Exemplo ingênuo, tocante e elucidativo, como tantos que poderia dar a vocês, é o da criança que um belo dia chega com ar triunfante junto aos pais, para comunicar –lhes sua recente e esclarecedora resposta para a angústia que, com certeza, o tomava sobre a questão da relação sexual, ou de como os bebês seriam feitos:
“- Ah há! Já sei o que vocês ficam fazendo debaixo das cobertas quando eu estou dormindo!...Comendo um delicioso frango assado! E não me dão nem um pedacinho!”
Como inscrever a relação sexual, a não ser através da fantasia, da imaginação e do amor? Sentimento de que aqueles dois, para quem a criança se julga tão importante, gozam de alguma coisa que ele não sabe, da qual é excluido, momento de abandono e desamor, e que à sua maneira parcial (ele adora comer frango assado), ele tem certeza de que tem alguma satisfação desconhecida, como satisfação genital, mas vislumbrada a partir dos prazeres que já teve e experimentou no corpo?.
Freud introduz, ao menos implicitamente então, a ideia de uma desnaturação do sexo no ser humano. O ser sexuado do organismo não basta para criar o ser sexuado do sujeito. O fato de nascerem homens ou mulheres não faz homens e mulheres conformados à sua anatomia nem os deixa, nem que seja eventualmente, inquietos com sua verdadeira feminilidade ou virilidade.
Quando nos referimos a “todas as mulheres” estamos falando da prevalência do registro civil. Se considerarmos a própria anatomia, quando existe o “apêndice fálico “ dizemos: “é menino”. Se não, “é menina”. Mas se se questiona se todas essas são mulheres, ou se diz “nem todas são mulheres”, estamos sugerindo de que há uma essência da feminilidade que escapa à anatomia e ao registro civil.
Freud define isso de maneira simples e clara. A feminilidade da mulher deriva do seu “ser castrada”, falta fálica que a direciona ao amor de um homem. Primeiro o pai, depois o cônjuge. Simples, não é?
Então, vejam, de forma simplificada e tosca, uma mulher se define por sua parceria com um homem...ao que as feministas objetaram com vigor, rejeitando a hierarquização do sexo! Fazer da falta fálica o núcleo do ser feminino é colocá-lo sob um signo menor.
Entretanto, se pensarmos essa mesma lógica fálica de um outro modo, em que as relações entre os sexos giram em torno de um TER ou SER um falo, a coisa muda inteiramente de figura!
Lacan começa a remanejar a tese freudiana , embora conserve a sua orientação, mas de uma forma simbólica, quando diz que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Não se trata do pênis, mas do falo, ou seja, de um significante, que, como todo significante, tem lugar no discurso do Outro. O Outro é o lugar da linguagem, da cultura, da sociedade, do direito.
Mas há sempre um fora do discurso, algo que as palavras não são capazes de dizer, que escapam à linguagem, que apenas os poetas conseguem, quem sabe, tangenciar, tocar por um átimo. Este é o lugar “não fálico”, do que não existe como linguagem, a falha, a falta, a que todos os seres falantes estão sujeitados. Podemos chamá-lo de vários nomes: real, indizível, feminino, mulher.
E estar sujeitado ao registro fálico, isto é da linguagem , da cultura, da lei é estar sujeitado às subjetivações de nosso tempo, ao gozo fálico,igualmente oferecido a todos e de todas as formas.
Como avaliar e formular não só no ambito da relação sexual, mas em todo o conjunto da realidade do mundo contemporâneo o impacto da reformulação da civilização?
O unissex é o regime do gozo fálico. Neste particular, não se pode falar da mulher ou do feminino, enquanto ser para o sexo. O unissex, pelo contrário é a supressão de qualquer diferença sob a égide do igualitário, da universalização globalizante, até dos corpos. Os corpos, hoje, são igualmente submetidos à malhação, aos checkups, que avaliam sua durabilidade, sua resistencia com a finalidade de serem capitalizáveis até para o amor, inspeccionados que são pelas máquinas estéticas e de todas as ordens tecnológicas, a serviço do capital .
A ciência reduz todos os sujeitos ao trabalhador, ao consumidor e ao consumido!
Vejam, que de novo, não estamos falando da mulher, na sua essência .A mulher é não toda. Isto quer dizer: não toda submetida à lei, à linguagem, ao registro fálico. Não toda , mas ainda assim, como sujeito de direito, social, de linguagem, submetida a ele.
Por isto mesmo, o resultado de tudo isto não as exclui, pelo contrário
Durante séculos elas viram seus gozos serem confinados aos limites do lar nas fiunções de dona de casa, esposa e mãe. O mercado de trabalho as emancipou deste campo fechado, mas ao preço de sua inclusão em outro, alienando-as nos imperativos da produção, da competitividade desvairada.
O certo é que hoje em dia não há campo a que as mulheres não tenham acesso!
É fato que a civilização da ciência mudou a realidade das mulheres. E não se trata necessariamente da felicidade delas!
Também a elas, como sujeitos de direito, sujeitos de linguagem afeitos à modernidade, estão franqueadas a angústia, a inibição, a culpa, os sentimentos de falta de realização, o stress e os enfartos. Todas estas perturbações, como efeitos de nossos tempos, fazem parte de um novo cortejo que acompanha tais mudanças
É com frequencia que vemos surgir no consultorio todo um arsenal de novos sintomas antes considerados “masculinos” , inclusive relacionados às formas de gozar e de viver relacionamentos sexuais e amorosos, como características de uma clínica da modernidade!
A angústia muda enquanto ligada à suposição do desejo do Outro, Outro da linguagem, Outro da Sociedade, como resposta à estilhaçante exigência sem medidas da Cultura dos tempos de fast- food
.As mulheres hoje experimentam a emancipação que multiplica as possibilidades de se determinarem, em função de seus anseios: casar-se ou não, ter filhos ou não, ter um homem ou não. Um homem é desnecessário à procriação àquelas que queiram se valer de um banco de esperma.Para outras a busca de “um pai” torna-se uma exigência tão idealizada que, a modo de um “Diógenes “ moderno, tão cínico quanto, acabam provando que tal pai não existe, usando tal argumento para se furtarem à maternidade! Procrastinação, tão comum nos homens, quando não querem se comprometer..Sintomas fálicos que atingem a feminilidade, nas suas formas de se apresentar.
São outros os sintomas da clínica da contemporaneidade..
Entretanto, perguntarão as mulheres: o que fazer com isso?.
O que fazer com o fato de sermos divididas, o fato de sermos não-todas, o fato de sermos eternas recorrentes do amor, o fato de nos prestarmos a ser o sintoma do homem?
Sim, dizem que se quisermos conhecer um homem, é bom prestar bem atenção em sua mulher.E ser um sintoma, não é necessariamente ruim..O sintoma organiza, complementa, norteia, mas também é o que aponta para a verdade do sujeito, ao que ele tem de mais real. Portanto pode ser muito incômodo!
Então, justamente por serem não-todas, por se manterem em contato com mais facilidade, tal como as crianças e os loucos, com o inconsciente, prestam-se à criação, à tolerância ao imprevisto, e ao desafio de desfazer, para fazer, de novo, outra coisa.Prestam-se inclusive a ser analistas. Emprestam-se à função de “semblant” de objeto. Prestam-se desta proximidade da verdade, nunca inteira, de apontá-la e fazer disso trabalho.Prestam-se, ao risco de serem as melhores e também as piores analistas como diz Lacan, a suportar o vazio, que é de estrutura e fazer dele poesia.
Parte delas a inovação. Sua não adaptação inteira às regras dá-lhes o poder subversivo de questionar a ordem, de mudar e de livrar os seus homens do efeito de “manada”tão deletério e tão arraigado nas instituições! O amor exigido pelos ideais, pelas lideranças agregadoras dos movimentos de massa, está na base de todos os totalitarismos, se não for questionado e moderado! Para isso, aí estão as mulheres!
Ao mesmo tempo o fato de que as demandas de amor sempre partam das mulheres faz com que elas possam mediar todos os movimentos que caminhem para a disrupção e o despedaçamento, fazendo ligações!É bem certo que as ligações costumam ser de cunho mais particular, mas, por isto mesmo, eficientes quanto à garantia de um movimento legítimo no sentido de um gozo vivo, impossível de dizer.E um gozo vivo impossível de dizer articulado a um desejo feminino é o que pode causar transformação no nível do social!
Uma mulher de político conhecido, muito engraçada, talvez por estar com ele em toda a sua empreitada social e política, disse-me uma vez: -“Por trás de um grande homem, tem sempre uma grande mulher! Pois sim! Se é por trás, não sei! Que sempre tem uma mulher, tem! Se for por trás é para empurrar, se for na frente, é pra puxar, se for do lado é para acompanhar...mas que tem uma mulher, tenho certeza que tem!!!
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