segunda-feira, 28 de abril de 2008

“Que te parece que pretendemos fazer quando falamos”?

No seminário “A jovem Homossexual” discutimos a questão da mentira o que suscitou uma reflexão sobre o tema “sujeito e linguagem”. Em torno desse tema, apresento nessa ata um resumo? de dois textos, que a todo instante escapavam a minha esforçada? ou arrogante? tentativa de resumi-los. Vamos, então, apresentar um esforço de resumo do qual só me resta deixar para lá, palavras, nesse claro-escuro de onde lemos, escrevemos, falamos e também resumimos.

Em “Sujeito e Linguagem”, capítulo do Livro A Escrita do Analista, Ana Maria Portugal reflete sobre o tema psicanálise e linguagem. Ana Portugal propõe pensar o “sujeito como um lugar, um lugar vazio, visto que a estrutura do mundo semântico, no qual a fala se institui como tal, estabelece lugares de direcionamento da massa significante, entre os quais o do sujeito.”. Enquanto lugar lógico, o sujeito diz sempre além ou aquém do que sabe ou quer dizer. “A palavra se manifesta de través, à revelia do sujeito”. Disso, percebe-se que através da palavra o sujeito tanto se torna presente quanto deflagra sua divisão. Sobre essa divisão destacam-se(entre as funções sintomáticas da palavras) a ambigüidade, o erro e o equívoco que com correspondem à condensação, recalque, negação. “ As três funções, bem como as três operações, suportam o sujeito em sua divisão: O recalque como fundador, a condensação como formação substituta do recalcado e a negação como tentativa de superar as condições de inacessibilidade do recalcado. O erro é um exemplo interessante para mostrar essa divisão na medida em que a mesma é mascarada. O sujeito quando erra não sabe que está errando, isto é, o erro não se apresenta como tropeço, a não ser quando a “a falha aparece ou alguém aponta. Com isso o erro mostra uma divisão muito bem feita, que separa mesmo uma parte, da qual o sujeito não quer saber”.A negação(suspensão lógica do recalque) por sua vez presentifica a divisão, “que aponta o sujeito como padecendo do campo do Outro, mas não disposto a aceitar, sem corte, essa sujeição” .A condensação que aponta para a ambigüidade de sentidos quando falamos “opera, paradoxalmente, também no sentido da divisão, da separação”.
Assim diante desse sujeito que tropeça, ou melhor, que “é um resto, um tropeço”, surge a pergunta sobre a verdade. “ A linguagem é aí questionada como o campo da suposição,da conjectura, da mentira”. É interessante sublinhar que esse registro tanto do erro como também do desconhecimento e da negação, no qual se encontra o discurso psicanalítico, aponta para a dimensão da verdade. Ana Portugal, apresenta a seguinte passagem de Lacan a esse respeito:“A palavra pode ser enganadora. Ora, por si só, o signo só pode se apresentar e sustentar na dimensão da verdade. Porque, por ser enganadora, a palavra se afirma como verdadeira. Isso para aquele que escuta. Para aquele que diz, o próprio engano exige o apoio da verdade que se trata de dissimular, e à medida que a palavra se desenvolve,supõe um verdadeiro aprofundamento da verdade, à qual ela responde”. Vale a pena ressaltar que essa relação do sujeito com a verdade vai apontar também para o desmentido e a rejeição(forclusão). Mas também com o jogo. Essa concepção de jogo para a psicanálise vai em direção contrária a de Wittgenstein, na medida em que “Freud ousa fazer pensar que o inconsciente não se reduz a uma pragmática, a uma forma de vida, que o homem não é usuário de seu inconsciente, e tampouco gerente de uma psique forma de vida. Há com a sexualidade e com o Outro uma relação de ‘equivocidade estrutural’, um fora-de-jogo, ao qual Freud confere um status com a noção de recalque primário, no qual se dá a fixação e a exclusão simultâneas do ‘representante psíquico da pulsão’.Tal é a lei com a qual o sujeito tem de se haver, lei que exclui o saber como todo, e instala a divisão, que sempre pesará sobre seus ombros, impelindo-o a lidar com isso, produzindo invenções”.


No capítulo “A Função significante da palavra: Lacan e Santo Agostinho” do livro Palavra e Verdade, Garcia-Roza nos apresenta a concepção agostiniana sobre a relação entre palavra e verdade. “ Para Santo Agostinho, a verdade não habita a palavra. Não é a palavra, enquanto verdade exterior, que produz a verdade. Esta, através da nossa interioridade, é que possibilita a palavra.(...).Mas, ao articular a palavra com a interioridade e com a verdade, Agostinho remete-a também simultaneamente ao registro do erro, do equívoco, da mentira. E é por referência a esse registro que podemos situar a questão do sujeito. É isto que interessa particularmente a Lacan em sua análise. É porque o outro é capaz de mentir, que sei que estou em presença de um sujeito. Se dois interlocutores fossem impedidos de mentir, de enganar, de ocultar, se fossem obrigados por alguma força superior a dizer ‘apenas a verdade e nada mais que a verdade, não poderíamos, a rigor, falar de relação intersubjetiva, a subjetividade cederia lugar à objetividade plena. O ‘minto, logo sou’ ou o ‘equivoco-me, logo sou’, são antecipações legítimas do cogito, ergo sum de Descartes. (...). Segundo Lacan, dizer que a verdade habita a interioridade do sujeito não significa eliminar o fato de que a palavra se instaura e se desloca na dimensão da verdade, mas sim que em presença das palavras não sabemos se elas são verdadeiras ou não;elas estão também inevitavelmente situadas no registro do erro, da equivocação, da mentira. Daí o título do segundo capítulo do De Magistro. “ Que os signos não servem de nada para aprender”. O signo é enganador, diz Agostinho, porque não mantém nenhuma relação natural com a coisa. A função significante da palavra não se faz pela relação que ela possa ter com a coisa significada, mas sim pela relação que ela tem com as outras palavras. Assim, diz Lacan, ‘a linguagem só é concebível como uma rede, um teia sobre o conjunto das coisas, sobre a totalidade do real. Ela inscreve no plano do real esse outro plano a que chamamos aqui o plano simbólico’. Tomados um a um, a relação do significante e do significado é inteiramente arbitrária. A razão pela qual as coisas têm o nome que têm não está na coisa nem no signo considerado isoladamente, mas nas definições, isto é, nas relações entre os signos. Como as definições são equívocas e enganadoras, a verdade só pode ser encontrada fora da linguagem: na interioridade do sujeito. É a interioridade que sustenta a verdade do signo”.
Segundo Garcia-Roza, a psicanálise instituindo um novo caminho, a via da verdade que percorre a psicanálise, é aquele “caminho das equivocações, lapsos, ambigüidades da palavra. É aí que habita a verdade do desejo, é por aí que o inconsciente faz suas irrupções, e é também que se inscrevem a condensação(Verdichtung), o recalcamento(Verdrängung) e a denegação(Verneinung).(...) É por percorrer os caminhos da Verdichtung, da Verdrängung, e da Verneinung, que a psicanálise tem como regra fundamental a associação livre, procedimento que permitirá o rastreamento das múltiplas determinações do sentido. Freud recupera, assim a via da opinião que havia sido rejeitada pelo discurso conceitual, e o faz não no sentido de opô-la à via da verdade, mas no sentido de mostrar que verdade e erro não são excludentes, posto que é precisamente na dimensão do erro e do equívoco que a verdade faz sua emergência”.
Cleide Scarlatelli

domingo, 27 de abril de 2008

A mulher não existe!? Como, então, definí-la?


Tem-se tentado definir a mulher das mais variadas formas, pelos mais variados saberes que circulam por esse nosso mundo. Os poetas, então... os escritores, os psicólogos, os sexólogos... A psicanálise mesma originou-se dessa tentativa de saber a respeito das histéricas, que foram as primeiras pacientes de Freud.
A mulher, na obra de Sigmund Freud, foi o ponto de partida para a criação da psicanálise, permanecendo aí como uma incógnita que a própria teoria a que deu lugar não conseguiu abarcar; aquele, então, novo saber não deu conta de apreendê-la, mas se constituiu como saber, criou-se como ciência, deixando sempre um resto que escapa, propiciando que se avance em busca de novos significantes que venham responder as questões que se abrem a cada formulação. No final de sua obra, Freud teria confessado sua decepção e talvez tivesse exclamado:
“A mulher é indizível”.
Toda uma teoria criada a partir dela não conseguiu dizê-la.
Afinal, foi possível à psicanálise abordar a mulher justamente por meio da falta, do que permaneceu desconhecido, do que não foi dito. Não pelo que se sabe, se escreve, se teoriza, mas pelo que não se conseguiu dizer.
Lacan, alguns anos mais tarde, retomou a questão da mulher apontando exatamente para esse lugar da falta, daquilo que permanece indizível, indignando o mundo feminista com seu aforismo: A mulher não existe. As feministas levantaram bandeiras, as analistas mulheres recusaram e debateram tal afirmação. O não existir foi tomado e mal interpretado como desvalorizante e absurdo. Afinal, as mulheres estão aí para dizer que existem e que, cada vez mais, lutam por suas condições de existência.
Porém, a condição de existência no universo simbólico é fálica. As coisas se nomeiam. Nós dizemos O HOMEM para designar homens e mulheres.
Então, homem e mulher são uma questão de posição dentro de uma estrutura de linguagem. Qualquer tentativa de definição é ideológica. Portanto, arriscada a cair numa dualidade especular, fechada, intransitiva, viciada e asfixiante de uma referência imaginária
Gilda Vaz Rodrigues

“..uma homossexualidade latente ou inconsciente pode ser detectada em todas as pessoas normais!

“..uma homossexualidade latente ou inconsciente pode ser detectada em todas as pessoas normais .Evidentemente cai por terra a suposição de que a natureza criou de maneira aberrante, um terceiro sexo “(Freud, pag 211 vol-III)


Esse trabalho se propõe a fazer uma reflexão sobre o estudo de caso da jovem homossexual de Freud (vol. X 1920) relacionado à obra biográfica de Sidonie Csillag lançada em 2000, de autoria de Inês Rieder e Diana Voigt. A aproximação entre o texto de Freud e a biografia nos permite refletir sobre a sexualidade humana, que está submetida aos destinos das pulsões e, não, do instinto, cujo objeto é pré-determinado. E é na descrição da sexualidade que se esboça a noção freudiana das pulsões, partindo da sexualidade infantil e dos estudos das perversões, mostrando como o objeto das pulsões é variável e contingente e que o corpo pulsional não é um corpo biológico.

Na conferencia XXI(1915-1917) que trata do “Desenvolvimento da Libido e as Organizações Sexuais” ele procura despertar a atenção dos ouvintes para questões que poderiam ajudá-los na difícil compreensão da sexualidade humana, mostrando como a condenação social das perversões prejudica as pesquisas cientificas e que até mesmo se nota em algumas pessoas uma certa inveja daqueles que experimentam práticas perversas. E que os atos sexuais dos pervertidos, por mais estranhos que sejam seus objetos e fins, produzem descargas genitais e orgasmo. E que os traços perversos quase sempre estão presentes na relação normal como o beijo que une duas zonas erógenas e não dois genitais, sendo portando um desvio perverso e mesmo assim aceito nas representações teatrais. E o que define a perversão é a exclusividade com que se efetuam os desvios sem finalidade reprodutiva, não pela “extensão do objetivo sexual nem pela substituição dos genitais e, mesmo, nem sempre na escolha de objeto”. Concluindo que “o abismo entre sexualidade normal e perversa é, naturalmente, muito diminuído por fatos dessa espécie”.( Conferencia XXI pág 377)

Freud utiliza a matriz reprodutiva para dizer à sociedade da época, que ela não é suficiente para explicar a sexualidade humana..

Ao iniciar o texto de 1920 Freud fala do descaso da psicanálise sobre a homossexualidade feminina. Fato que a meu ver tem sua fonte no desconhecimento da sexualidade feminina própria da cultura e da medicina psiquiátrica da época

Franco da Rocha em seu esboço sobre psiquiatria forense-1904 fala: “uma alienada, de excitação maníaca intermitente, que entra em perfeita saúde mental quando esta grávida,caindo sempre em perturbação quando fora da gravidez” e outro brasileiro psiquiatra de renome e romancista cria, em 1925 , a personagem Cora ,uma mulher
que se recusa a ter filhos ,comete um aborto , dedica sua vida inteiramente aos seus cães –enlouquecendo “de vez”( Historia das mulheres no Brasil- pág. 336-337-Psiquiatria e Feminilidade Magali Engel). Esta associação da loucura com a recusa da maternidade, fazia parte do retrato da família no mundo ocidental com a finalidade de controlar a sexualidade feminina vista com objetivo único, a procriação Aos homens eram designados outros papeis, sucesso profissional e cultural, aliado a uma vida sexual plena fora da família .

É dentro deste contexto que podemos entender as referencias feitas por Freud as dificuldades inerentes a compreensão da sexualidade feminina citadas no texto de 1923 Em “Organização Genital Infantil”(vol XIX-1923 ) ao tratar do caráter principal da organização genital infantil :
“o caráter principal da organização genital infantil ...reside em que ,em ambos os sexos ,um único órgão genital, o órgão masculino ,tem seu papel a desempenhar .Não existe portanto uma primazia do genital mas do falo ,” “Infelizmente, só podemos descrever esse estado de coisas na criança do sexo masculino ;falta-nos conhecimento dos processos correspondentes na menina( pag39 “As origens femininas da sexualidade Jacques André”” ) .
E só foi publicar, seu trabalho”Sexualidade Feminina aos 75 anos de idade.

Sidonie sempre foi uma estranha para os padrões culturais de sua época: homossexual- não gerou filhos, perseguida em nome de um povo o qual ela afirmava(negava) não pertencer, cristã de batismo e judia de origem,apátrida. Com o término da segunda guerra mundial e mudança do mapa da Europa, Sidonie, de nacionalidade austríaca,passa a ter nacionalidade soviética, não obstante detestar o regime político, recusando o passaporte soviético.

Nessa conjuntura foi adquirindo uma forte personalidade já inferida por Freud, ao despedir-se dela em Berggasse:
“-Usted tiene unos ojos tan inteligentes! No quisiera encontrarme em la vida com usted em calidad de enemigo” * pag.19 Sidonie Csillag





Adendos

Fatores determinantes na formação de uma identidade como família , meio social são descritos na biografia de Sidonie, através das relações e escolhas amorosas”( amantes do mesmo sexo e do sexo oposto; Petzy o cachorro que a acompanhou durante toda sua vida no exílio , relações com as famílias nas casas onde trabalhou ) e passam ao leitor desavisado a impressão de uma pessoa que atravessou uma grande fogueira sem se queimar. Após escrever este parágrafo, lembrei-me do primeiro texto que escrevi para uma jornada do IEPI . Tudo que existe no mundo dos vivos ,existe para aparecer e ser percebido pelos sentidos ,para isto que é que a nossa natureza foi dotada de órgãos sensoriais .Existimos a medida que aparecemos isto é, somos percebidos pela nossa mãe ,pai e seus representantes ,assim por diante .Somos indivíduos que percebem e são percebidos .Freud em suas conferências alertava seus interlocutores no sentido de um ordenamento no raciocínio,para não serem confundidos pelos sentidos. E Hanna Arendt “tudo que aparece adquire , em virtude de sua fenomenalidade ,uma espécie de disfarce que pode de fato, embora não necessariamente, ser para desfigurar ou ocultar “-(H.A. A vida do espírito –pag-19)


Lucia Cunha Frota




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Que seriam as consequências psíquicas da diferença anatômica dos sexos???

Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. (S. Freud (1925).ESB , vol. XIX)

“Para se compreender a diferença dos sexos tem que partir do pulsional, sendo motivada por pulsões egoístas”, cita Freud no artigo “Sobre as tórias sexuais das crianças (1908)”. Porém, para Freud existe, uma classificação inicial segundo o gênero, anterior à castração e que não implica o pulsional, segundo ele, a criança é capaz de distinguir, “graças aos signos mais exteriores”, pai e mãe, e se posicionar de um lado ou de outro. Tal distinção, diz Freud, não leva em conta a diversidade dos órgãos sexuais (no artigo: A organização genital infantil). Aqui a criança não faz ligação entre sexo e gênero ou, a apreensão deste se faz sem levar em conta o órgão sexual. Portanto a distinção dos sexos ocorre em um momento diferente da distinção dos gêneros. “Essa questão remete à identidade de gênero,” (sou menino ou sou menina) ou de sexos (sou masculino/masculinidade ou sou feminina/ feminilidade).
A construção deste quadro é complexa , e depende da etapa pré édipica e édipica .vividas na primeira infância e completada na puberdade , onde : órgão genital masculino / castrado será substituído por masculino / feminino ( “ A organização genital infantil ¨¨Vol;XIX ,pg 184 ) .

Para o entender desta dinâmica é que Freud vai analisar o inicio da vida sexual nos neuróticos, focando em sua infância, avaliando suas pulsões primárias e suas conseqüências, para assim , avaliar a formação de sua neurose .
Em sua investigação sobre a vida sexual das crianças o alvo do tema era o menino, e supunha ser igual para a menina, embora pudesse ser diferente, diferença que não podia ser determinada.
É dentro deste contexto que Freud vai pesquisar a historia pré- édipica, o complexo de Édipo e a castração, seus efeitos na estruturação da personalidade humana, de suas atuações no superego e no ideal do ego. O complexo de Édipo é fundamental na orientação do desejo e nas escolhas feitas no decorrer da vida, como escolha do objeto de amor, escolha marcada por investimentos objetais e identificações relacionadas aos conflitos édipicos. O modo como o individuo nele se introduz e o abandona, deixa marcado seu efeito.

No menino, a fase pré-édipica é do tipo afetuosa, ainda não identifica o pai como rival, ocorre aqui uma atividade.
masturbatória vinculada ao órgão genital, cuja supressão põe em atuação o complexo de castração, que coloca em risco a imagem egóica que esta em construção, e ainda causa um impacto sobre o narcisismo: o fato é considerado por ele uma parte essencial de si mesmo. Nesse período a mãe é o objeto de investimento libidinal (não ainda um objeto genital) de ambos os sexos, para o menino o objeto se manterá o mesmo, o que não ocorre com a menina, ela irá trocar por outro. O complexo de Édipo no menino pertence à fase fálica, a mãe como objeto de amor libidinal, e o pai se torna seu rival. Sua dissolução é feita pela castração, porém, não é de todo reprimido, é fragmentado pela castração. Seus investimentos libidinais são abandonados e em parte sublimados, os objetos incorporados ao ego, onde formam o núcleo do superego. Freud diz, que em casos normais ou em casos ideais, o complexo de édipo não existe mais, nem mesmo no inconsciente, o superego se tornou seu herdeiro. Tanto no menino, como na menina, o complexo de Édipo possui uma orientação dual, ativa e passiva, de acordo com sua construção bissexual. A menina deseja ser objeto de amor de seu pai, tomando o lugar de sua mãe, fato que Freud descreve como atitude feminina.

A descoberta da zona genital ocorre de forma análoga para ambos os sexos, o menino, quando vê o órgão genital da menina, não tem interesse, não vê ou rejeita, abranda a situação de acordo com suas expectativas, somente diante da ameaça de castração, que a observação se torna importante para ele, aí acredita na possibilidade desta se realizar (a castração). Essa circunstancia promove duas reações, que podem se tornarem fixas, quer separadas ou não, junto com outros fatores determinaram suas relações com as mulheres, horror da criatura mutilada (castrada) ou desprezo por elas.

No caso da menina, quando vê pela primeira vez o pênis de um menino e o identifica com seu órgão (clitóris), porém, o dele é visível e maior, superior ao seu, desperta então, a inveja do pênis. Conclui que não tem e quer telo. Segundo Freud, “o reconhecimento da castração por parte da mulher leva a um estado de insatisfação, a uma rebeldia que se instala contra a superioridade do homem e sua própria inferioridade”.

Ocorrem ai três saídas:

a) Diante da castração, cria o que Freud chamou de complexo de masculinidade, a esperança de um dia possuir um pênis e que se tornara homem, dificultando o desenvolvimento no sentido da feminilidade e podendo levar a um comportamento homossexual..

b) Frigidez: insatisfeita com seu clitóris, abandona qualquer atividade sexual fálica.
c) Atitude sexual normal, segundo Freud, situação em que escolhe o pai como objeto de amor, que a levará a uma escolha heterossexual.

Diante de sua ferida narcísica, outras conseqüências podem ocorrer:

I.Sentimento de inferioridade, como punição pessoal para si mesmo e vai compartilhar do desprezo sentido pelos homens, por um sexo que lhes é inferior neste aspecto (em relação ao clitóris).

II. Um afrouxamento da relação afetuosa da menina com seu objeto materno. A mãe é responsável por sua falta do pênis.

III. Sentimento contrário à pratica da masturbação clitoriana, não é regra, é considerada como sendo uma atividade masculina, e se faz pelo sentimento narcísico de humilhação, não poder competir com os meninos. Esse reconhecimento da distinção anatômica dos sexos a afasta da masturbação masculina e da masculinidade e a conduz ao desenvolvimento da feminilidade.

Essa inveja, segundo Freud, depois de abandonar seu objeto, ela persiste deslocada, persiste no traço do ciúme. Isso é o que ocorre na fase pré-édipica da menina, o complexo de castração é primário, ao contrario do menino, e a prepara para vivência do complexo de Édipo.

A partir desse momento, a libido da menina é deslocada, seu desejo de possuir um pênis para o desejo de ter um filho, com esse objetivo, toma o pai como objeto de amor e, a mãe como objeto de seu ciúme. Mais tarde esta relação tem de ser abandonada, pode resultar em uma identificação com ele e então pode retornar ao complexo de masculinidade, fixada nele. Na menina, a dissolução do complexo de Édipo não encontra argumentos, mesmo abandonado é de alguma forma insatisfatória, não superada. “O que a faz abandonar sua atitude ambivalente de amor e ódio em relação aos pais”?

Entender essa questão é sine qua non para compreender de que maneira ele será revivido na adolescência e nos cria um paradoxo: como reviver algo que não foi superado, que ainda existe? Portanto, o complexo de Édipo nas meninas é uma formação secundária, o complexo de castração o antecede e o faz possível, enquanto nos meninos, o complexo de Édipo é destruído pelo complexo de castração, essa contradição se justifica, segundo Freud, porque o complexo de castração opera no sentido de seu conteúdo, ele inibe e limita a masculinidade e incentiva a feminilidade.

E concluí Freud, “A diferença entre o desenvolvimento sexual dos indivíduos do sexo masculino e feminino no estádio que estivemos considerando”., é conseqüência inteligível da distinção anatômica entre seus órgãos genitais e da situação psíquica aí envolvida, corresponde à diferença entre uma castração que foi executada e outra que foi ameaçada.
Segundo Ceccarelli , “ foram as contribuições de Lacan sobre a sexuação do corpo que mostram , que a inscrição do sujeito na função fálica não considera a diferença anatômica dos sexos . “ Feminilidade ¨ e “ masculinidade ¨ são duas representações do falus , e então , a identidade do sujeito é da ordem do significante , levando o a se posicionar no simbólico como homem ou mulher .

Referências Bibliográficas :
Freud ,S (1908) ,Sobre as teorias sexuais da criança , ESB , vol IIX .
( 1923 ) ,A Organização genital infantil , ESB , Vol : XIX .
( 1925 ) , Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos , ESB ,Vol : XIX , págs 303 à 320 .
Ceccarelli , P ( org ) , Diferenças Sexuais , 1999, pg 157 .
Artigo : A violenta repetição do Édipo na adolescência : O Caso de uma jovem homossexual .
Denise Ribeiro .

terça-feira, 22 de abril de 2008

Sobre "A jovem homossexual,ficções psicanalíticas", ainda um outro olhar


"Ainda, um outro olhar".


Resenhada por Noemi Moritz Kon (Noni), psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, mestre em psicologia pelo IPUSP e autora de Freud e seu duplo: reflexões entre psicanálise e arte. (EDUSP/FAPESP, 1996).


End. Al. Joaquim Eugênio de Lima, n. 680, cj. 53.

Tel. (011) 285-4579. CEP. 01403-001.


Ainda, um outro olhar.




Resenha de Rosa Maria Gouvêa Abras (org.) A jovem homossexual: Ficção Psicanalítica, Belo Horizonte, A. S. Passos Editora Ltda., 1996, 108 p.




"Viena, 17 de dezembro de 1919.

Liebe Elizabeth.

Alguns meses nos separam desde minha última carta. Desculpe-me pela demora, Sissi, mas, como você sabe, a vida anda bastante agitada aqui em Viena, aliás, como em toda parte. Os tempos são negros, muitas doenças e fome; as coisas não estão mesmo fáceis, mas nada que um passeio pela Ring não nos faça esquecer.

Só espero que esses novos planos dos sociais-democratas venham mesmo para garantir esta nossa república parlamentar, que nasce, como se fala por aí, das cinzas do velho império, não é?

Você tem seguido ultimamente os folhetins? São mesmo ótimos, mas não se comparam aos acontecimentos que tenho acompanhado aqui na casa dos von Kleist. Ser governanta de uma família tão tradicional aqui de Viena, me permite presenciar momentos difíceis de serem esquecidos.

Como você bem sabe, temos tido recepções muitíssimo interessantes - com concertos, valsas e, também, com declamações de poesia. Não é mais como outrora, como acontecia ainda há uma década atrás, mas é bem divertido observar damas e cavalheiros tão bem trajados, participando daquela harmoniosa e alegre atmosfera e, ao mesmo tempo, com algum estranhamento, surpreender trocas de olhares lascivos entre respeitados membros de nossa sociedade, que revelam, ou prometem, discretas relações extra-conjugais.

Mas essa é ainda a velha e nostálgica Viena, com sua jovialidade e pompa próprias de nosso querido Francisco José, que se destaca, através de um olhar mais apurado, nestas outras atitudes.

Mas deixemos de lado estas generalidades. Sissi, gostaria de lhe por a par das novidades da família von Kleist.

Você sabe que a madame acaba de ter mais um filho varão. O tempo passa, mas Frau Alma von Kleist mantém a silhueta. Vive com o caçulinha no colo, mas, é claro, sempre dispõe de tempo para suas aulas de canto e para a visita à costureira. Ela é uma ótima mulher: amável com o esposo, atenta com os empregados e com os afazeres domésticos - nada falta aqui, apesar destes tempos de dificuldade -, muito carinhosa com seus filhos varões. Mas devo lhe dizer algo: Frau von Kleist é um pouco displicente com sua filha, fräulein Leonora. Lembra-se dela?

Leonora é aquela menina fogosa, de quem já lhe falei, que se punha a brincar com seu irmão Friedrich de uma maneira tão intensa; chegaram a tal ponto, que um dia não me contive e disse a eles que uma brincadeira como aquela não era adequada.

Logo eu, que não sou dada a intervir na educação da família; sei bem qual é o meu lugar, mas não pude me conter.

Leonora, hoje uma jovem no fulgor de seus dezoito anos, é muito inteligente, até mesmo atrevida. É uma espécie de feminista, como se diz por aí; reivindica seu espaço, quer estudar, ter os mesmos direitos dos homens, enfim, ser como seu irmão.

E é justamente Leonora o personagem principal dos acontecimentos que se desenrolam aqui - na verdade, superamos de longe a ficção de Arthur Schnitzler. Nosso enredo tem ingredientes ainda mais picantes do que os dele; daria, certamente, um bom romance.

Acontece que depois de se fartar de visitar aquele menininho de três anos por quem ela tanto se afeiçoou - lembra-se que eu já lhe relatei em outra carta -, Leonora passou a procurar jovens senhoras, mães recentes.

Do que tenho ouvido falar, nas últimas férias que a família tirou na estação de águas, em Bad Gastein, Leonora passou todo o tempo atrás de uma atriz, ainda sem qualquer renome, e segundo Herr Anton von Kleist, uma moça um tanto vulgar. Seu pai, que normalmente é tão atarefado - com o trabalho e tudo o mais - e, digamos, um tanto ausente, está agora muito preocupado com a filha e com sua reputação.

Daí, os acontecimentos só se avolumaram; não sei se somente para irritar seu pai ou tê-lo mais perto, ou, ainda, para mostrar algo à mãe que lhe é, vamos dizer, um tanto distante, Leonora passou a procurar insistentemente uma certa Maria Klein, que não goza de bom nome, - parece ser mesmo uma demi-mondaine -, mas que fräulein von Kleist cerca de favores.

Segundo pude averiguar, esta tal Frau Klein teria até posado nua - é, nua! -, para um certo pintor que faleceu em outubro passado. Dizem que ele teria apanhado a gripe espanhola, mas ouvi boatos sobre suicídio. Lembra-se dele? Um mocinho chamado Egon Schiele.

Mas voltemos aos von Kleist. Outro dia a bomba estourou: Herr von Kleist, retornando do escritório, deu de cara com Leonora de braços dados com esta "zinha" em pleno passeio público. Pelo que soube, o pai lhe jogou um tal olhar que fräulein não se sustentou e caiu, ou se atirou, nos trilhos do trem. Por sorte, não se machucou muito, a coitadinha, mas ficou acamada por algumas semanas para se recompor.

Obtive, ainda, outras informações através de uma amiga que passava pelo local e tudo viu e ouviu. Segundo sua versão, Maria Klein teria dito à pobre Leonora que não a queria mais por perto. Deve ter sido um golpe muito forte para a mocinha, que assim deve ter se decidido, em um impulso, pelo suicídio.

Mas como são as coisas... este infortúnio foi de valor para Leonora. Até mesmo Frau Klein tem mandado pedir notícias sobre seu estado e, através de mensageiros, lhe presenteia com flores e doces. E mais, agora todos aqui na casa são mais carinhosos com ela. É mesmo. Todos que antes rodeavam apenas Frau von Kleist passaram a cuidar, com todo zelo, de fräulein.

Pelo que escuto nos corredores, as seguintes providências serão tomadas: em primeiro lugar, Leonora continuará um tratamento com um tal de Dr. Sigmund Freud, um médico judeu, aqui mesmo de Viena, que lhe foi indicado por seu irmão Friedrich. Segundo soube, este tratamento chama-se psicanálise. Eu mesma tenho acompanhado Leonora todos os dias - de segunda a sábado - até a rua Bergasse para que ela converse com este senhor. Algumas vezes, ela comenta o que fazem juntos: ela fala o que lhe ocorre na cabeça, ele lhe pede que lembre de fatos de sua infância e algumas vezes, eles examinam seus sonhos. É, sonhos! Não falo aqui de desejos futuros, mas destes sonhos esquisitos que temos quando dormimos. O mais estranho, (mas como penso besteiras, não deve haver nada de errado e, certamente, não seria do gosto de fräulein), é que ela fica todo o tempo deitada em um divã e ele sentado (segundo o que Leonora me diz) em uma poltrona bem atrás dela.

Leonora me parece bem, mas nada me convence de que mudará sua conduta. Ela sai do consultório do Professor Freud com uma cara muito marota. No fundo, creio que ela aceitou manter estas conversas com o Dr. Freud apenas para acalmar seu pai.

Ah, já ia me esquecendo... Herr von Kleist planeja ainda uma outra alternativa para a filha rebelde. Outro dia, entretida na limpeza, vi-o ler, para Frau von Kleist, o esboço de uma carta que ele enviaria a seu sócio, incentivando o matrimonio entre Leonora e o filho de seu amigo. Sei que é por conveniência - ainda mais, numa situação como esta -, mas seria mesmo um bom negócio.

Por hora são estas as novidades... mas deixe-me ainda lhe perguntar uma outra coisa que tem insistido em minha mente: não foi mesmo um tal Dr. Freud que andou passeando com a prima Katharina, há tantos anos atrás, pelos campos de nossa Hohe Tauern, para lhe dar uns conselhos e lhe tirar aquelas idéias amalucadas da cabeça?

De toda forma, ele não teve muito sucesso com Leonora, pois na última sessão - é assim que se chamam estes encontros - ele indicou uma outra doutora para dar prosseguimento ao tratamento de fräulein. Uma senhora chamada Helene Deutsch. Os tempos mudaram mesmo! Uma médica mulher! Quem sabe Leonora não esteja mesmo certa e as mulheres terão maiores chances no futuro e ocuparão outros espaços de trabalho além do da família, não é?

Bem, vou me despedindo. Espero que em casa todos estejam de boa saúde e aproveito o ensejo para lhes desejar um Feliz Natal e um ano próximo melhor do que estes que o antecederam.

Abraços a todos

Gunda Pappenunheim."


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O livro que apresento aqui, A jovem homossexual: ficção psicanalítica, foi organizado por Rosa Maria Gouvêa Abras tendo como ponto de partida uma idéia muito divertida e interessante. Rosa Maria utiliza "A Psicanálise de um caso de homossexualismo numa mulher" (1920) de S. Freud, como disparador de um exercício de múltiplos olhares em torno de um mesmo acontecimento: Leonora, uma jovem de dezoito anos, tenta o suicídio, depois de receber um certo olhar de seu pai, ao ser surpreendida por este, no momento em que passeava com uma querida amiga, de má reputação, pelas ruas de Viena. Seu comportamento é o motivo pelo qual a levam ao consultório de Freud e, dos encontros que se seguiram, surge o artigo do psicanalista.

Para a discussão deste artigo de Freud, Rosa Maria Abras usa de um artifício instigante: convida diversos psicanalistas para, partindo do ponto de vista de cada um dos protagonistas da trama, fazer a narrativa dos acontecimentos. Assim, a apresentação é feita por Marcio Peter de Souza Leite, Oscar Cezarotto faz às vezes do Pai, José Domingues de Oliveira conta a versão da Mãe, Renato Mezan traz o olhar do Irmão, a visão da Dama é narrada por Ângela Maria Araújo Porto Furtado, a Jovem é encarnada por Maria Rita Kehl e ainda temos um comentário, ao modo do diário clínico de Sàndor Ferenczi, escrito por Eliana Schueler Reis, além de um resumo do caso, elaborado pela organizadora. Cada autor, em um estilo diferente, traz uma interpretação parcial dos acontecimentos e o conjunto formado por estas narrativas é, sem dúvida, muito atraente.

Este livro, de muitas versões, me fez lembrar uma peça de teatro recentemente levada em S.Paulo, chamada Tamar. Nesse espetáculo não havia palco; era encenado em uma casa e cada elemento da platéia deveria escolher um dos personagens para seguir, podendo assim ter a visão específica do protagonista eleito. Desta forma, o que se tinha eram visões parciais e, em realidade, a experiência da visão possível, sempre singular. Lembrei-me também de uma obra de Julio Cortázar, O jogo da amarelinha 1, que podia ser lida de diferentes maneiras, ao se variar a sequência dos capítulos, de forma a questionar a ordem linear e causal das histórias. Esta é uma tendência atual nas artes - basta pensar no cubismo - e que permite que experienciemos, assim como acontece na própria psicanálise, que uma história, em realidade, são inúmeras e feitas de múltiplas facetas concomitantes.

Assim sendo, o mínimo que se pode dizer da leitura deste livro é que ela é prazeirosa e que, enfim, nos enseja a adoção desta postura multifacetada, ou seja, a vivência dos muitos olhares. A personagem da criada, é claro, não faz parte da descrição de Freud; foi uma liberdade que tomei - não resisti à tentação de entrar na brincadeira -, mas ela é mesmo plausível e muitas outras o seriam. Teci-a com os fios do artigo original de Freud, mas utilizei, também, as visadas dos autores presentes no livro, apoiando-me, ainda, em alguma informação bibliográfica.

Para além deste exercício, temos o caso descrito por Freud, que, por si só, já é muito interessante e permite o rastreamento de suas primeiras observações, agora já mais claras, sobre a homossexualidade e a feminilidade, que iriam, mais tarde, se desdobrar em "Algumas consequências psíquicas da diferença sexual anatômica" (1925), "Sobre a sexualidade feminina" (1931) e "A feminilidade" (1933). Sabemos das inúmeras críticas que foram lançadas ao psicanalista quanto a sua posição relativa ao feminino. Mas Freud é Freud, e sempre nos surpreende; além de importantes indicações técnicas, poderemos seguir, em mais uma oportunidade, sua teorização, que é sempre precisa - quer concordemos com seu ponto de vista ou não - e útil.

De toda forma, Leonora, assim como Dora (Freud, S., 1905), não deu a Freud o sucesso que ele teria desejado; em ambos os casos, a relação transferencial é mal resolvida e o tratamento interrompido precocemente. Estas mulheres, assim como as suas primeiras histéricas, que o jogaram no rumo da psicanálise, lhe escapam mais uma vez.

Sintomaticamente, é a uma psicanalista que Freud entrega fräulein von Kleist para o prosseguimento de sua análise. Conjecturas levam-nos a imaginar que Helene Deutsch, a mesma que havia recebido, em confiança, o difícil discípulo Victor Tausk - que se suicidou neste mesmo ano de 1919 - tenha recebido a incumbência de dar continuidade à psicanálise de Leonora.

As mulheres - e são tantas as que marcaram sua vida -, parecem ter mesmo muito a trazer para Freud; e, assim, também o fez, a velha e feia criada de Sigmund, que o colocou no caminho de suas criações.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

O QUE O ANALISTA FAZ? CIÊNCIA?

O inconsciente não conhece a contradição (Freud, S)

A ciência é um conjunto de conhecimentos coordenados e relativos a um objeto determinado ou aos fenômenos de uma ordem ou classe. Caldas Aulete: Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa.
Muito da teoria da psicanálise teve seu fundamento no mecanicismo e no determinismo. Essas influências vieram de um grupo de pesquisadores da época que atribuíam as funções do corpo como um todo, às propriedades físicas e químicas iguais a dos objetos inanimados. Nesse início, Freud aceitou esse fisicalismo, acreditando também, que o comportamento era resultante de forças pré-determinadas sempre dentro de uma explicação. Além disso, sua teoria sofreu influências de Charcot e seu método de hipnose; de Janet que dizia que a deteriorização da memória, as idéias fixas e outros sintomas eram de causas psíquicas e de Darwin, através de sua teoria das diferenças individuais dentro da mesma espécie, levantando a hipótese de uma linha de continuidade entre o comportamento dos animais inferiores até o homem, o que suscitou em Freud a teoria da continuidade emocional da infância até a idade adulta.
A psicanálise não foi desenvolvida dentro dos muros universitários e não estava no campo da ciência pura, pois nasceu da observação clínica dos pacientes de Freud. Porém a psicanálise se relaciona com o discurso da ciência, pois seus conceitos fundadores são tradicionais no campo da Fisiologia a saber: a sensação, a percepção e a aprendizagem; seu método é a da observação clínica; e seu objeto de estudo são as estruturas clínicas.
Segundo Jéferson Pinto (Por que os Ratos não Falam?) A psicanálise vive, um paradoxo que o behaviorismo se considerado um legitimo representante da ciência, não vive. A psicanálise tem a mesma necessidade da ciência, mas é um discurso construído para recolher aquilo que a ciência expurga, ou seja, a causa do desejo do sujeito....A psicanálise só se sustentou até hoje, em um mundo tão objetivante, porque Freud era um cientista e, como tal, adotou um procedimento científico. Ele formulou o inconsciente como um objeto de estudo, o que, até, então, era inimaginável.
No entanto não é possível saber antecipadamente do inconsciente do sujeito da psicanálise, porque isso é do campo da singularidade, requerendo uma construção durante todo tempo do processo analítico. Se a ciência diz de um conjunto de conhecimentos que se acumulam formando uma teoria refutável que pode ser verificada, quantificada, etc., como podemos aplicar esses parâmetros ao inconsciente? Lacan em sua palestra sobre a psicanálise e a universidade, mostra que: A psicanálise comporta a conversão do sujeito, obriga-o a se colocar de outra forma quanto ao saber. Como o sujeito esvaziado, evanescente de Descartes, é um sujeito dito “antiuniversitário”. O sujeito na experiência psicanalítica imagina-se procurando a verdade, aquém ou além do saber. Não a encontra; mas ela sim, o encontra. A isso chamamos, lapso, chiste: momento em que o sujeito se depara ultrapassado pela palavra. Eis a razão por que tal sujeito está num estado de divisão e não no estado de controle, como no discurso universitário.
Assim perguntamos: Qual a garantia que se aplicarmos a teoria psicanalítica de uma determinada estrutura clínica em um analisando, seguindo uma técnica e uma metodologia, ele encontrará a sua verdade da mesma maneira que um outro vivencia a sua destituição subjetiva? Adotar uma posição, da ciência, de transmitir um conjunto de conhecimentos não é uma injunção do discurso psicanalítico. Mas nessa construção da verdade e da singularidade do sujeito do inconsciente o que os analistas fazem? Uma anticiência? Ou fazem cientistas?

Heloisa Mamede
Referências
Lacan, J. A Psicanálise na Universidade. In Lacan Elucidado: Palestras no Brasil. Ed. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1997.
Pinto, M.J. Por que os Ratos não Falam? In: Psicoterapias: Paradigmas em Colisão? IV Seminário de Pesquisa do Departamento de Psicologia da UFMG. 1996.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Mulheres e contemporaneidade




Angela Maria de Araujo Porto de Furtado*


A mulher, o que se pode dizer dela?
O que elas podem se dizer sobre isso?
O que pode uma psicanalista dizer sobre a mulher?
O que diz dela o inconsciente?
A pergunta se justifica na medida em que o inconsciente é um saber e ele o é tanto quanto é decifrado nos ditos dos analisandos, sejam eles homens ou mulheres.
Ninguém desconhece que a descoberta de Freud foi muito mal recebida à sua época, sob a alegação dos costumes vigentes e a acusação de pansexualismo, isto é, dizia-se que Freud via sexo em tudo!
Mas o Sexo, com maiúscula, para designar como faz a língua francesa, essa metade dos seres falantes que chamamos mulheres, este Sexo, ele não a encontrou em parte alguma! Curioso pansexualismo!
O que estou querendo dizer com isto? No inconsciente decifrado por ele, dos ditos de seus analisandos, o outro Sexo, o Segundo como diria Simone de Beauvoir, que inscreveria a diferença feminina, não existe!
As pulsões que movimentam os seres humanos são parciais, portanto, “perverso polimorfas”. A criança constroi teorias quanto à relação entre os sexos, mas na verdade as inventa, a partir da experiência parcial que tem de suas pulsões, de suas satisfações, sempre parciais. E as teorias que inventa nada dizem da diferença entre homem e mulher e deixam intacta a questão de saber o que distingue a essência da mulher...
Exemplo ingênuo, tocante e elucidativo, como tantos que poderia dar a vocês, é o da criança que um belo dia chega com ar triunfante junto aos pais, para comunicar –lhes sua recente e esclarecedora resposta para a angústia que, com certeza, o tomava sobre a questão da relação sexual, ou de como os bebês seriam feitos:
“- Ah há! Já sei o que vocês ficam fazendo debaixo das cobertas quando eu estou dormindo!...Comendo um delicioso frango assado! E não me dão nem um pedacinho!”
Como inscrever a relação sexual, a não ser através da fantasia, da imaginação e do amor? Sentimento de que aqueles dois, para quem a criança se julga tão importante, gozam de alguma coisa que ele não sabe, da qual é excluido, momento de abandono e desamor, e que à sua maneira parcial (ele adora comer frango assado), ele tem certeza de que tem alguma satisfação desconhecida, como satisfação genital, mas vislumbrada a partir dos prazeres que já teve e experimentou no corpo?.
Freud introduz, ao menos implicitamente então, a ideia de uma desnaturação do sexo no ser humano. O ser sexuado do organismo não basta para criar o ser sexuado do sujeito. O fato de nascerem homens ou mulheres não faz homens e mulheres conformados à sua anatomia nem os deixa, nem que seja eventualmente, inquietos com sua verdadeira feminilidade ou virilidade.
Quando nos referimos a “todas as mulheres” estamos falando da prevalência do registro civil. Se considerarmos a própria anatomia, quando existe o “apêndice fálico “ dizemos: “é menino”. Se não, “é menina”. Mas se se questiona se todas essas são mulheres, ou se diz “nem todas são mulheres”, estamos sugerindo de que há uma essência da feminilidade que escapa à anatomia e ao registro civil.
Freud define isso de maneira simples e clara. A feminilidade da mulher deriva do seu “ser castrada”, falta fálica que a direciona ao amor de um homem. Primeiro o pai, depois o cônjuge. Simples, não é?
Então, vejam, de forma simplificada e tosca, uma mulher se define por sua parceria com um homem...ao que as feministas objetaram com vigor, rejeitando a hierarquização do sexo! Fazer da falta fálica o núcleo do ser feminino é colocá-lo sob um signo menor.
Entretanto, se pensarmos essa mesma lógica fálica de um outro modo, em que as relações entre os sexos giram em torno de um TER ou SER um falo, a coisa muda inteiramente de figura!
Lacan começa a remanejar a tese freudiana , embora conserve a sua orientação, mas de uma forma simbólica, quando diz que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Não se trata do pênis, mas do falo, ou seja, de um significante, que, como todo significante, tem lugar no discurso do Outro. O Outro é o lugar da linguagem, da cultura, da sociedade, do direito.
Mas há sempre um fora do discurso, algo que as palavras não são capazes de dizer, que escapam à linguagem, que apenas os poetas conseguem, quem sabe, tangenciar, tocar por um átimo. Este é o lugar “não fálico”, do que não existe como linguagem, a falha, a falta, a que todos os seres falantes estão sujeitados. Podemos chamá-lo de vários nomes: real, indizível, feminino, mulher.
E estar sujeitado ao registro fálico, isto é da linguagem , da cultura, da lei é estar sujeitado às subjetivações de nosso tempo, ao gozo fálico,igualmente oferecido a todos e de todas as formas.
Como avaliar e formular não só no ambito da relação sexual, mas em todo o conjunto da realidade do mundo contemporâneo o impacto da reformulação da civilização?
O unissex é o regime do gozo fálico. Neste particular, não se pode falar da mulher ou do feminino, enquanto ser para o sexo. O unissex, pelo contrário é a supressão de qualquer diferença sob a égide do igualitário, da universalização globalizante, até dos corpos. Os corpos, hoje, são igualmente submetidos à malhação, aos checkups, que avaliam sua durabilidade, sua resistencia com a finalidade de serem capitalizáveis até para o amor, inspeccionados que são pelas máquinas estéticas e de todas as ordens tecnológicas, a serviço do capital .
A ciência reduz todos os sujeitos ao trabalhador, ao consumidor e ao consumido!
Vejam, que de novo, não estamos falando da mulher, na sua essência .A mulher é não toda. Isto quer dizer: não toda submetida à lei, à linguagem, ao registro fálico. Não toda , mas ainda assim, como sujeito de direito, social, de linguagem, submetida a ele.
Por isto mesmo, o resultado de tudo isto não as exclui, pelo contrário
Durante séculos elas viram seus gozos serem confinados aos limites do lar nas fiunções de dona de casa, esposa e mãe. O mercado de trabalho as emancipou deste campo fechado, mas ao preço de sua inclusão em outro, alienando-as nos imperativos da produção, da competitividade desvairada.
O certo é que hoje em dia não há campo a que as mulheres não tenham acesso!
É fato que a civilização da ciência mudou a realidade das mulheres. E não se trata necessariamente da felicidade delas!
Também a elas, como sujeitos de direito, sujeitos de linguagem afeitos à modernidade, estão franqueadas a angústia, a inibição, a culpa, os sentimentos de falta de realização, o stress e os enfartos. Todas estas perturbações, como efeitos de nossos tempos, fazem parte de um novo cortejo que acompanha tais mudanças
É com frequencia que vemos surgir no consultorio todo um arsenal de novos sintomas antes considerados “masculinos” , inclusive relacionados às formas de gozar e de viver relacionamentos sexuais e amorosos, como características de uma clínica da modernidade!
A angústia muda enquanto ligada à suposição do desejo do Outro, Outro da linguagem, Outro da Sociedade, como resposta à estilhaçante exigência sem medidas da Cultura dos tempos de fast- food
.As mulheres hoje experimentam a emancipação que multiplica as possibilidades de se determinarem, em função de seus anseios: casar-se ou não, ter filhos ou não, ter um homem ou não. Um homem é desnecessário à procriação àquelas que queiram se valer de um banco de esperma.Para outras a busca de “um pai” torna-se uma exigência tão idealizada que, a modo de um “Diógenes “ moderno, tão cínico quanto, acabam provando que tal pai não existe, usando tal argumento para se furtarem à maternidade! Procrastinação, tão comum nos homens, quando não querem se comprometer..Sintomas fálicos que atingem a feminilidade, nas suas formas de se apresentar.
São outros os sintomas da clínica da contemporaneidade..
Entretanto, perguntarão as mulheres: o que fazer com isso?.
O que fazer com o fato de sermos divididas, o fato de sermos não-todas, o fato de sermos eternas recorrentes do amor, o fato de nos prestarmos a ser o sintoma do homem?
Sim, dizem que se quisermos conhecer um homem, é bom prestar bem atenção em sua mulher.E ser um sintoma, não é necessariamente ruim..O sintoma organiza, complementa, norteia, mas também é o que aponta para a verdade do sujeito, ao que ele tem de mais real. Portanto pode ser muito incômodo!
Então, justamente por serem não-todas, por se manterem em contato com mais facilidade, tal como as crianças e os loucos, com o inconsciente, prestam-se à criação, à tolerância ao imprevisto, e ao desafio de desfazer, para fazer, de novo, outra coisa.Prestam-se inclusive a ser analistas. Emprestam-se à função de “semblant” de objeto. Prestam-se desta proximidade da verdade, nunca inteira, de apontá-la e fazer disso trabalho.Prestam-se, ao risco de serem as melhores e também as piores analistas como diz Lacan, a suportar o vazio, que é de estrutura e fazer dele poesia.
Parte delas a inovação. Sua não adaptação inteira às regras dá-lhes o poder subversivo de questionar a ordem, de mudar e de livrar os seus homens do efeito de “manada”tão deletério e tão arraigado nas instituições! O amor exigido pelos ideais, pelas lideranças agregadoras dos movimentos de massa, está na base de todos os totalitarismos, se não for questionado e moderado! Para isso, aí estão as mulheres!
Ao mesmo tempo o fato de que as demandas de amor sempre partam das mulheres faz com que elas possam mediar todos os movimentos que caminhem para a disrupção e o despedaçamento, fazendo ligações!É bem certo que as ligações costumam ser de cunho mais particular, mas, por isto mesmo, eficientes quanto à garantia de um movimento legítimo no sentido de um gozo vivo, impossível de dizer.E um gozo vivo impossível de dizer articulado a um desejo feminino é o que pode causar transformação no nível do social!
Uma mulher de político conhecido, muito engraçada, talvez por estar com ele em toda a sua empreitada social e política, disse-me uma vez: -“Por trás de um grande homem, tem sempre uma grande mulher! Pois sim! Se é por trás, não sei! Que sempre tem uma mulher, tem! Se for por trás é para empurrar, se for na frente, é pra puxar, se for do lado é para acompanhar...mas que tem uma mulher, tenho certeza que tem!!!
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terça-feira, 8 de abril de 2008

Sonhos Hipócritas...realizações de desejo?




Resumo sobre a referência da nota de rodapé do texto: A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher – 1920 – Vol. XVIII, pág. 204: ‘Sonhos hipócritas’ – Interpretação dos Sonhos, Vol. IV, pág. 143, e Vol. V, pág. 503 - Ed. Standard.
Seminário: O caso da jovem homossexual. Coordenação: Ângela Porto.

“Minha teoria não se baseia numa consideração do conteúdo manifesto dos sonhos, mas se refere aos pensamentos que são indicados pelo trabalho de interpretação como existentes atrás dos sonhos. Devemos estabelecer um contraste entre o conteúdo manifesto e latente dos sonhos.” Pág. 144, Vol. IV.

O Cap. IV da Interpretação dos sonhos se refere a deformação nos sonhos. Freud se pergunta:
“Qual a origem da deformação onírica?” E responde: “Existe alguma incapacidade, durante o sono, para dar expressão direta aos nossos pensamentos oníricos.” Pág. 145, Vol. IV.

Constata que: “Em casos onde a realização do desejo é irreconhecível, onde ela tenha sido disfarçada, deve ter havido alguma inclinação para estabelecer uma defesa contra o desejo; e graças a esta defesa o desejo foi incapaz de expressar-se, a não ser de forma distorcida.” Pág. 151, Vol. IV.

Esclarece que: “Os sonhos recebem sua forma em indivíduos humanos mediante a ação de duas forças psíquicas; e que uma dessas forças constrói o desejo que é expresso pelo sonho, enquanto a outra exerce uma censura sobre esse desejo onírico e, pelo emprego dessa censura, forçosamente acarreta uma distorção na expressão do desejo... Quando temos em mente que os pensamentos oníricos latentes não são conscientes antes que se tenha procedido a uma análise, ao passo que o conteúdo manifesto do sonho é conscientemente lembrado, parece plausível supor que o privilégio fruído pela segunda força é o de permitir que os pensamentos entrem na consciência. Nada, assim parece, pode alcançar a consciência a partir do primeiro sistema sem passar pela segunda instância; e a segunda instância não permite que ocorra coisa alguma sem exercer seus direitos e fazer as modificações que julgue adequadas no pensamento que esteja procurando penetrar na consciência.” Pág. 154, Vol. IV.

Mais uma vez se pergunta: “Como os sonhos com um conteúdo aflitivo podem ser transmudados em realizações de desejo? Isso é possível se a deformação do sonho tiver ocorrido e se o conteúdo penoso servir apenas para disfarçar algo que se deseja... Os sonhos aflitivos de fato encerram alguma coisa que é penosa à segunda instância, mas algo que, ao mesmo tempo, realiza um desejo por parte da primeira instância. São sonhos impregnados de desejos até o ponto em que todo sonho decorre da primeira instância; a relação da segunda instância para com os sonhos é de natureza defensiva e não criativa.” Pág. 155, Vol. IV.

Resalta que: “Existe um componente masoquista na constituição sexual de muitas pessoas, que decorre da inversão de um componente agressivo e sádico para seu oposto. Pessoas dessa espécie podem ter sonhos de contra-desejo e sonhos desagradáveis, que são, não obstante, realizações de desejos, visto satisfazerem suas inclinações masoquistas.” Pág. 169, Vol. IV.

“Mesmo os sonhos com um conteúdo penoso devem ser construídos como realizações de desejos. O sentimento aflitivo provocado por esses sonhos sem dúvida é idêntico à repugnância que tende (em geral com êxito) a nos tolher a discutir ou mencionar tais tópicos, e que cada um de nós tem de superar-se, não obstante, não nos sentimos compelidos a nos envolvermos neles. Mas o sentimento de desprazer que dessa forma se repete não nega a existência de um desejo. Todos têm desejos que preferem não revelar a outras pessoas, e desejos que não admitem nem sequer perante si mesmos. Por outro lado, estamos justificados em ligar o caráter desagradável de todos esses sonhos com o fato da deformação onírica. E estamos justificados em concluir que esses sonhos são distorcidos e a realização de desejo neles contida se acha disfarçada até o ponto de ser irreconhecível, precisamente em vista da repugnância que se sente pelo tópico do sonho ou pelo desejo oriundo do mesmo e a uma intenção de recalcá-los. Demonstra-se assim que a deformação no sonho é um ato de censura... Um sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (recalcado).” Pág. 170, Vol. IV.

No Vol. V. ainda da Interpretação dos Sonhos, Freud trata dos afetos nos sonhos e diz que: “Existe ainda outra maneira alternativa pela qual a elaboração onírica pode tratar com os afetos nos pensamentos oníricos, além de permitir-lhes passagem ou reduzi-los a nada. Ela pode transformá-los em seu oposto... Esta transformação de uma coisa em seu oposto é tornada possível pela íntima cadeia associativa que liga a idéia de uma coisa com seu oposto em nossos pensamentos. Como qualquer outro tipo de deslocamento, ela pode servir aos fins da censura, mas é também, com freqüência, um produto da realização de desejo, por que esta consiste em nada mais que uma substituição de uma coisa desagradável pelo seu oposto.” Pág. 504, Vol. V.

No caso da jovem homossexual, Freud relata que em certo momento ela trouxe para a análise uma série de sonhos, “que previam a cura da inversão pelo tratamento, expressavam sua alegria pelas perspectivas de vida que então se lhe abririam, confessavam seu anseio pelo amor de um homem e por filhos”.

Pela lógica freudiana esses sonhos apresentavam-se deformados pela censura, e podiam ser traduzidos. No seu relato à Freud ela não escondia “que pretendia se casar só para fugir da tirania do pai, e seguir livremente suas verdadeiras inclinações. Em relação ao marido, observava que lidaria com ele com facilidade, e que poderiam ter relações com um homem e uma mulher ao mesmo tempo, como o exemplo de sua adorada”.

Estavam evidentes as contradições entre os sonhos e as afirmativas da jovem na vida desperta. Freud então a interpreta dizendo não acreditar naqueles sonhos, que lhe parecia falsos e hipócritas e que ela pretendia enganá-lo, tal como habitualmente enganava o pai.

Freud achava que estava certo porque os sonhos cessaram após esse esclarecimento. Acreditava também que além da intenção de desorientá-lo, os sonhos expressavam o desejo de ganhar sua boa opinião para posteriormente desapontá-lo mais completamente ainda. Freud então não acreditava ter sensibilizado a jovem com sua interpretação. Achava que o seu comportamento se repetiria novamente.

Esta interpretação foi fundamentada na transferência da jovem quanto ao repúdio em relação aos homens que a dominara, em função do desapontamento sofrido com o pai, que “não lhe dera um filho”.

Na visão de Freud, essa forma de transferência inviabilizou o tratamento da jovem. Em sua experiência clínica ficava evidente que o repúdio contra os homens se manifestaria numa transferência negativa com o analista, tornando ineficazes os esforços do mesmo e o apego à doença por parte do paciente. “Sei por experiência quão difícil é fazer o paciente entender esse tipo silencioso de comportamento sintomático e torná-lo ciente desta hostilidade latente e excessivamente forte (reação terapêutica negativa) sem por em perigo o tratamento”. Neste momento Freud interrompe a análise da jovem e aconselha aos pais que o tratamento deveria ser continuado por uma mulher.


Suposições:

Porque Freud não acreditou que sua interpretação sensibilizaria a jovem? Pensando no conceito lacaniano de Sujeito Suposto Saber: a jovem nesse momento supunha um saber a Freud, de que ele sabia de seu repúdio aos homens. O que se sucede com Freud? Que tipo de pensamento lhe ocorre? Que mulheres que repudiam homens não são tratáveis? Ou ele se identifica com os homens que são repudiados... Ele também se coloca como possível de ser repudiado... Ele se presta como objeto para a fantasia da jovem, tamponando-a. Ele se coloca para a jovem como seu pai: homem repudiado. E interrompe o tratamento.

Pensando no conceito de verdade não-toda, Freud não suportou ou não acolheu o não-sabido da jovem, o furo no saber: repúdio aos homens como ponto de contradição e enodamento (as duas intenções de amor e ódio ao pai), Freud nesse momento não sustentou o seu não-sabido, respondeu ao “Que queres?”. Não sustentou o enigma... Assim não foi possível atualização do inconsciente com o seu ponto de não-saber.

Atendo-nos ao texto freudiano, pensando em estrutura, nesse momento parece que houve uma posição histérica da jovem. Mas na verdade trata-se de uma suposição, como o tratamento foi interrompido, não foi possível uma confirmação dessa suposição de estrutura.

Simone Caporali Ribeiro

segunda-feira, 7 de abril de 2008

O DIZER DA INOCÊNCIA NO EROTISMO



O caso da jovem homossexual

Ao procurar as fontes que permitam retraçar uma história da homossexualidade através das eras, uma constatação impressiona o espírito curioso: a história da homossexualidade é a história da homossexualidade masculina. Na realidade, não se atribui importância à homossexualidade feminina , na medida em que o erotismo entre as mulheres não comporta os mesmos riscos-conscientes e inconscientes que o erotismo entre os homens. Convém, na verdade, se quisermos examinar essa questão com um pouco de seriedade e apuro, tomar como ponto de partida de nossa reflexão, o fato de que a homossexualidade feminina e a masculina não são simétricas. A dessimetria faz-se notar,primeiramente, no nível da relação com o pai.O homem homossexual cede todas as mulheres ao pai e assim se esquiva de qualquer conflito com ele, a mulher homossexual, por sua vez, ao abandonar todos os homens à mãe , só faz preparar o terreno onde se atribui a missão de enfrentar o pai no próprio campo de seu desejo. Serge André In: A Impostura Perversa

A leitura do romance Sidonie Csillag: La joven homossexual de Freud de Inês Rieder e Diana Volgt, produz um estranhamento perante o amor de adoração da jovem Sidonie (Sidi) pela dama (Leonie). Será que as mulheres são amadas, desse modo, quando se trata de um homem? Sidi era uma jovem protegida, sem experiências sexuais e apesar do meio mundano em que se encontrava com a dama, permanecia intocável, inocente, sem nenhum saber sobre o desejo erótico. Queria, apenas, ser a única da Outra entre todas as mulheres que cortejam a dama.
Sidonie pronto se da cuenta de que, probablemente, es la única persona femenina “correcta” em el entorno lascivo de su hermosa. Su amor es tan fuerte que en algún momento, se instalará en lo profundo del corazón de Leonie.
De que estrutura estamos falando? Seria essa passagem de ser a única e absoluta ao lado de Leonie, nessa recusa ao gozo sexual, uma posição de assujeitamento ao registro do imaginário como objeto falo que tampona a falta materna,objeto único do desejo do outro? Ou seria o imperativo de se tornar o falo da dama em uma posição masculina própria da estrutura histérica? Não ter o encargo do gozo é algo que a histérica se interroga colocando em julgamento a questão da função paterna e seus limites.
Tantas são as perguntas, tantas são as leituras que fazemos... quem sabe encontraremos algumas respostas na mãe sedutora ou no pai rico e poderoso?
A mãe de Sidi era de grande beleza, coquete bastante assediada pelos homens, porém mantendo- os à distância, fazendo de sua imagem corporal, um falo. É nessa posição que expõe a sua feminilidade ao pai de Sidi, mostrando para o mesmo a sua fraqueza de não ser homem suficiente para ela. Sidi (a rival) sempre fora preterida pela mãe que a mantinha distante do pai, além de se desmanchar em carinhos para com os três filhos homens. O pai rico e poderoso era distante, exigente, rígido com a família e ao mesmo tempo fraco, bancando o homem em uma posição de passividade antes de tudo feminina, perante essa esposa sedutora. Freud nos mostra que é no desejo pelo pai, quando recalcado, que estaria a origem da histeria. A passividade da histérica perante o desejo do Outro, responderia, então, ao desejo de restaurar a figura paterna. Essa irrealização tem seu contraponto na fantasia de preencher a hiância constituída pela castração da mãe.
A mulher não existe, diz Lacan. Isso implica na inexistência de uma identidade propriamente feminina, ou seja, a ausência de um significante da feminilidade. A mulher identifica-se ao falo pela lógica de ser objeto de desejo, sendo o mais além dessa identificação, o reencontrar dos impasses da relação com o Outro materno e com o imperativo do gozo.
Dentro dessa lógica lacaniana a questão de Sidi seria afastar-se dos homens deixando-os para a mãe e/ou mostrar ao pai que queria ser amada por sua feminilidade além de um objeto desejável? Argumento que Sidi não queria ser desejada, mas sim encarnar o modelo de perfeição buscando o amor ideal. Não é essa sempre a procura da histérica, o amor total numa mistura de amor e desejo? Seria, então, a homossexualidade de Sidi aquela a que a histérica é conduzida por sua neurose ou a da posição perversa que a fazia se interessar por outra mulher experimentando um gozo inacessível ao homem? Na posição perversa a mulher sustenta que está em melhores condições do que o homem para fazer a outra mulher gozar. É verdade, que a introdução de Freud entre essas duas mulheres, correspondeu a inserção de uma figura masculina a qual a jovem ironizava e burlava contando seus encontros com a dama como se fossem sonhos. Mas não seriam fantasias histéricas?
Termino, citando Serge André em sua fala sobre o desejo histérico: a homossexualidade na histérica está ligada à identificação com a outra mulher, em quem ela busca o enigma da feminilidade, e não com o objeto de seu desejo. A outra mulher por quem ela se apaixona, encarna a imagem ideal através da qual pode gozar consigo mesmo por procuração. A outra mulher é, na realidade, uma imagem do Outro, ou seja, daquilo que sempre permanece inacessível na feminilidade e impossível de delimitar enquanto objeto sexual. Eis ai a jovem homossexual de Freud.
P.S.. Aguardo o desmentido.
Heloísa Mamede Silva Gonzaga
Referências
Freud, S. A Psicogênese de um Caso de Homossexualismo numa Mulher. ESB, vol. XVIII, Rio de Janeiro, ed. Imago, 1996.
Lacan, J. Seminário Mais Ainda. Rio de Janeiro, ed. Jorge Zahar, 1985.
André, S. A Impostura Perversa. Rio de Janeiro, ed. Jorge Zahar, 1995.





O TABU DA VIRGINDADE


Discutindo a questão da sexualidade feminina e seu enigma, a partir da leitura do caso da Jovem Homossexual, o escrito de Freud sobre o Tabu da virgindade pode ser interessante para apimentar esse enigma. Também pode ser interessante para sentirmos na leitura estratégias de escrita, necessárias, quando nos colocamos em contato com um saber do que não se sabe. Freud desenvolve várias teses a respeito do Tabu da Virgindade sempre nos fazendo sentir na leitura de cada uma delas uma resposta para logo em seguida apontar para um outro lugar. Termina o capítulo apresentando a “controvertida” tese sobre o Tabu da Virgindade: “Inveja do Pênis”. Mas será que, como as outras “respostas” do texto, essa não é apenas mais uma face do enigma?



Resumo: O TABU DA VIRGINDADE

Nesse escrito, Freud, inicialmente, esclarece o valor do defloramento para os “povos primitivos. Primeiramente, aponta que de forma alguma eram indiferentes ao defloramento. Além de um ato significativo também tornou-se “matéria de tabu”. A prática da ruptura do hímen acontecia fora do casamento. O noivo era “poupado” de ser o autor da “execução”, que acontecia antes da primeira relação sexual marital. Freud apresenta casos de várias culturas onde o defloramento era feito por uma mulher idosa, por outros homens, ou pelo sacerdote.
Freud se pergunta sobre a razão da prática de ruptura do hímen ter se tornado tabu. E aí Freud encontra, como uma primeira explicação, o Tabu do sangue e o Tabu da menstruação entre os povos “primitivos”. Um segunda explicação se liga à questão da presença da neurose de angústia nesses povos. Uma outra explicação estaria ligada a um tabu em relação à mulher. Mas Freud salienta que “os primitivos” instituem um tabu quando temem algum perigo. “ De modo geral, esse perigo é de natureza física, pois o homem primitivo, a essa altura, não é impelido a estabelecer duas distinções, que para nós não podem ser ignoradas. Ele não separa o perigo material do psíquico, nem o real do imaginário. Em sua concepção animista do universo consistentemente aplicada, todo perigo decorre da intenção hostil de algum ser dotado de alguma alma como ele próprio, e isto se aplica tantos aos perigos que o ameaçam, procedentes de alguma força natural, como aos perigos procedentes de outros seres humanos ou animais. Mas, por outro lado, ele está acostumado a projetar seus próprios impulsos internos de hostilidade no mundo exterior, isto é, a atribuí-los aos objetos que sente como desagradáveis ou mesmo, meramente estranhos. Desta maneira,a s mulheres também são consideradas como sendo fonte desses perigos, e o primeiro ato sexual com a mulher destaca-se como um perigo de real intensidade”.
Freud buscando examinar o sentido desse perigo examina o comportamento de mulheres do “próprio estágio atual de civilização”. Freud assinala que mesmo que a mulher pareça demonstrar gratidão e sinais de sujeição duradoura no ponto “máximo” do ato sexual, essa não é a regra em relação ao primeiro ato sexual. Na verdade, o que se percebe é desapontamento e frieza e leva algum tempo para que ela possa experimentar alguma satisfação. Assim, a partir do enigma da frigidez feminina, Freud tenta compreender o tabu da virgindade. “(...)depois da primeira, e por certo, depois de cada experiência repetida de relação sexual, a mulher dá expressão manifesta de sua hostilidade para com o homem, injuriando-o, levantando a mão contra ele ou realmente, batendo-lhe.(...)O perigo que assim se levanta pelo defloramento de uma mulher consiste em atrair sua hostilidade para si próprio, e o marido em perspectiva é exatamente a pessoa que teria toda razão para evitar tal inimizade”.
A esse desapontamento das mulheres, em relação ao primeiro ato sexual, Freud associa a questão das proibições em torno da sexualidade. Durante um bom tempo as mulheres associaram a relação sexual a proibições e estas não são encontradas numa relação sexual legítima, o que as faz perder toda ternura pelo caso de amor. Entretanto, Freud não acha suficiente essa explicação e nos leva a pensar sobre a sexualidade infantil. “O marido é, quase sempre, por assim dizer, apenas um substituto, nunca o homem certo; é outro homem- nos casos típicos o pai-que primeiro tem direito ao amor da mulher, o marido quando muito ocupa o segundo lugar.”
Mas Freud mais uma vez no texto, busca outras razões para o Tabu da Virgindade. Segundo ele, “o primeiro ato de relação sexual ativa na mulher outros impulsos antigos,(...), e estes estão em absoluta oposição a seu papel feminino e à sua função”. Freud desenvolve essa questão apontando para a “inveja do pênis no complexo de castração”. No caso que descreve em que a mulher tornava-se agressiva depois da relação sexual Freud relaciona esse comportamento com uma fase que “existira antes da escolha de objeto. Só mais tarde a libido da menina dirigida para seu pai e, então, em vez de desejar ter um pênis,desejou - um filho” .
Concluindo, Freud escreve que o defloramento desencadeia a reação arcaica de hostilidade para com os homens. Assim, “o tabu da virgindade, que nos parece tão estranho, o horror com que, entre os povos primitivos, o marido evita o ato do defloramento, são plenamente justificados por essa reação hostil”.
Cleide Scarlatelli

Amor: Ficção heróica ou fixação neurótica?


Uma reflexão sobre o texto de Freud:
“Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens”
Contribuição à psicologia do amor I (1910)


Ao atender uma menina de 10 anos escuto as seguintes palavras: “Meu pai morreu com sete facadas, dando em cima de uma mulher casada”. Se atentarmos para a sonoridade da frase, percebemos que há nela uma conotação imaginativa trágica, porém bela. Suas palavras tecem, em torno do abismo de seu trauma, uma história. Por enquanto a menina está muito doente; em seu corpo vejo as marcas de uma escrita heróica. Pergunto-me se a psicanálise poderá ajuda-la.

Freud, ao iniciar o seu texto: “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens”, o faz introduzindo a reflexão sobre a arte do escritor naquilo que a “licença poéticas ” lhe possibilita: criar prazer estético e despertar emoções: (...) O escritor vale-se (...) da sensibilidade que lhe permite perceber os impulsos ocultos da mente de outra pessoa e de coragem para deixar que a sua própria, inconsciente se manifeste. A partir daí, no texto de Freud, a psicanálise com o “romance familiar do neurótico”, para que algo se desvende nesse terreno inefável e misterioso do amor. Freud então descreve uma tipologia que o permite criar uma “série de condições necessárias ao amor”, no homem, “cuja combinação é ininteligível e até desconcertante”. O triangulo edípico é o pano de fundo sob o qual se desenrola toda nebulosa imaginária da criança empenhada em salvar seus primeiros objetos de amor_ o pai e a mãe. Porem, transfigurada na densa série de imagens femininas, o complexo materno se inscreve na subjetividade infantil.
A primeira das pré-condições é a fantasia de que, nesse triângulo, “deva existir uma terceira pessoa prejudicada; estipula que a pessoa em questão nunca escolherá uma mulher sem compromisso (...) uma mulher sobre a qual outro homem possa reivindicar direitos de posse” Segundo Freud, instala-se aí o terreno, através do qual, as pulsões de agressividade e rivalidade irão se gratificar.
A segunda pré-condição para o amor, talvez seja aquela na qual se inscreverá os impulsos da “Jovem homossexual”, caso clínico de Freud, 10 anos mais tarde: o amor à prostituta. O objeto amoroso prevalente seria uma mulher, de alguma forma, sexualmente de má reputação, cuja fidelidade e integridade estão expostas. Entram aí os murmúrios de escândalo a alguém inocente ou até “o modo de vida francamente promiscuo de uma cocotte ou de uma profissional na arte do amor”. O afeto gerado é o ciúme, não à pessoa a quem pertence a amada mas os estranhos que lhe fazem a corte. “ Em casos evidentes o amante não demonstra qualquer desejo de posse exclusiva da mulher e parece sentir-se perfeitamente à vontade na situação triangular”
A terceira pré-condição relaciona-se ao que Freud chama de objetos amorosos do mais alto valor, os quais conduzem o amante à uma fidelidade extrema, exigindo- se um alto dispêndio de energia. Se repetem, _ esses amores_ formam uma série que revelam sua natureza compulsiva. Aqui predomina o que Freud vai chamar de uma fantasia de salvar a mulher, ânsia de salvar, e o amante se inclinará por uma escolha cuja amada seria alguém mais madura (constelação psíquica relacionada à mãe).
O que parece animar Freud em sua investigação sobre o amor masculino é o forte contraste entre a mãe e a prostituta e a relação inconsciente entre os mesmos, pois já houvera descoberto que, o que no consciente se encontra dividido entre dois opostos, muitas vezes ocorre no inconsciente como uma unidade. A criança então, já no declínio do Complexo de Édipo, portanto com um estoque verbal e simbólico bem desenvolvidos investe o imaginário com os mais variados temas sobre a sexualidade dos pais. Os afetos_ competição, rivalidade, ciúmes, ânsia de salvamento e outros formam o substrato de onde derivam as mais surpreendentes conclusões a que chega o menino na pré-moldagem de sua futura escolha objetal ou, também, a estrutura de sua fixação neurótica. Freud parece perceber que, não obstante o pai exerça um papel preponderante na triangulação edipiana, o núcleo central para onde convergem a maior parte das fantasias da criança é a mãe. O pai, esse intruso rival sempre duvidoso, terá também que ser salvo, pois afinal, imagina o menino, não quero nada de meu pai; devolver-lhe-ei tudo que gastou comigo. Porém a mãe, como núcleo do complexo parental, mesmo prostituta, é aquela que lhe deu a vida, e a criança terá que se haver com esses paradoxos. Este é o romance familiar do neurótico, que, tal como num processo onírico secundário, poderá desdobrar-se na criação literária ficcional. Não estaria aí a origem do mito do herói? As crianças em seus devaneios, inventam seus personagens que segundo Freud, seria uma forma simbólica de se aproximar do real: A antítese do brincar não é o que é sério mas o que é real , nos dirá ele em “Escritores criativos e devaneios”.

Bem próximo à Freud e Lacan, o filósofo francês Gilles Deleuze nos traz, neste contexto, uma substantiva contribuição. Segundo ele:
(...) não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a psicose não são passagem de vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado.(...) Por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo. O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura aparece, então,como um empreendimento de saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma saúde de ferro, mas ele goza de uma frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis(...)

Referências bibliográficas

DELEUZE, GILLES. “ A literatura e a vida” In: Crítica e Clinica _ São Paulo: Ed. 34, 1997

FREUD, SIGMUND. “ Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens” ( contribuição à psicologia do amor I – [1910] ) In: Obras completas de Sigmund Freud Vol. XI . Imago Editora; Rio de Janeiro: 1982.

FREU, SIGMUND. “Escritores criativos e devaneios” (1908 [1910] ) In:Obras completas de Sigmund Freud. Vol. IX, Imago Editora; Rio de Janeiro: 1982.

FREUD, SIGMUND. “ Romances Familiares” (1909 [1908] ) In: Freud, Sigmund. Vol. IX, Imago Editora; Rio de Janeiro: 1982.


Maria Barcelos de Carvalho Coelho
Belo- Horizonte, 4 de abril de 2008